NAUFRÁGIO – Reflexões de Padre Alfredinho


A noção de naufrágio remete ao Mundo Antigo e à Idade Média, com suas embarcações frágeis
e vulneráveis pelos mares bravios. Lembra de forma toda particular os séculos XV e XVI, época
dos grandes descobrimentos e longas navegações, onde eram frequentes os ataques dos piratas.
Mas remete também à famigerada noite entre 15 e 15 de abril de 1912, ano em que o imbatível
Titanic, gigantesco titã dos mares, chocou-se com um iceberg, causando a morte de quase 1500
pessoas. E remete, ainda, às últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI, quando
inúmeros imigrantes perderam a vida, tanto na arriscada travessia das águas do mediterrâneo,
quanto em outras travessias igualmente temerárias.

O naufrágio de imigrantes, entretanto, de um ponto de vista figurado, traz à tona as tormentas de
um modo de produção que, em lugar da primazia sobre o trabalho e a pessoa humana, privilegia
a privatização dos lucros e a acumulação do capital. Trabalhadores e trabalhadoras, num vaivém
sucessivo e em sua grande maioria forçado, são vistos como meras “peças de reposição” de uma
engrenagem complexa, impiedosa e cada vez mais globalizada. Peças que tendem a ser, a um só
tempo, desejadas e rechaçadas. O fato de que expressivos deslocamentos humanos se põem em
movimento pela face da terra, costuma revelar turbulências ocultas. Representam, a bem dizer,
agitação superficial e visível de correntes subterrâneas invisíveis. Os terremotos ou maremotos
provocados pelas decisões políticas e econômicas, com seus efeitos em cascata, soem produzir
tsunamis populacionais que marcham em todas as direções.

Os imigrantes, considerados como peças de reposição, são desejados onde e quando escasseiam
os braços para os serviços que, se de um lado requerem grande dispêndio de força e energia, de
outro dispensam especial qualificação técnica, sendo em geral precariamente remunerados. Mas
são igualmente rechaçados onde e quando a crise e o desemprego rondam as portas. Tornam-se,
então, estranhos e intrusos que, nos lugares em que desembarcam, disputam as oportunidades e
as migalhas do trabalho com a população local. Com frequência, de resto, a acolhida e o rechaço
ocorrem no mesmo espaço e de forma simultânea, de acordo com a oscilação cíclica, turbulenta
e contraditórias da produção capitalista.

Nestes casos, não é difícil constatar como a “mão invisível” da obra de Adam Smith, Teoria dos
Sentimentos Morais (1759) não dispensa o punho de ferro das forças da ordem. Numa palavra,
quando o liberalismo (ou neoliberalismo) obtém ganhas vultosos e mão-de-obra abundante, vale
o credo da mão invisível. Entretanto, quando o ciclo da crise vem acompanhado de rajadas de
ventos furiosos e contrários, seus representantes não hesitam em apelar para o punho de ferro da
polícia e do exército, no sentido de conter possíveis desordens sociais e políticas. Os senhores
que, em tempos de lucros fáceis e fartos, pregam a liberdade total do mercado, rejeitando toda e
qualquer intervenção do poder público, são os mesmos que, no momento da crise e de menores
taxas de rentabilidade, gritam pelo socorro do Estado autoritário.

Pressionado de um lado e de outro, entre a terra natal definitivamente deixada para trás e um
destino incerto, os migrantes acabam se configurando como mais atual “bode expiatório”, às
vezes tanto na origem como no destino. Tendo abandonado a própria pátria por não encontrar
nela condições dignas de vida, não raro os migrantes e refugiados são tidos como desordeiros no
lugar onde tentam se fixar e reconstruir o destino interrompido. Os que falham nesse propósito e
procuram retornar ao solo de onde partiram, também ali muitas vezes serão classificados como
estrangeiros e indesejáveis. Discriminados lá e cá, num polo e no outro. Com o pé em cada lado,
não se encontram em pátria alguma. “Dupla ausência”, de que nos fala Abdelmalek Sayad.
Somando os danos ao meio ambiente, causados pelo uso incorreto e indiscriminado dos recursos
naturais, por uma parte, e a superexploração da força humana, por outra, cabe-nos perguntar até
quando a Terra prosseguirá sua navegação sem risco de um colossal naufrágio planetário?!…

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 12 de dezembro de 2021

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