A CRUZ
Plantada no solo fértil da história, a cruz se converte em um símbolo reconhecidamente universal de luz, paz e amor. Não é sem razão que ela divide a trajetória da humanidade em duas partes, a.C. e d.C. Como pode ocorrer que um dos instrumentos de tortura mais cruéis do Império Romano tenha se transformado numa nascente de água viva, cristalina e transparente? De que maneira o madeiro maldito se transfigura em sinal de fé, consolo e esperança para milhões de pessoas ao longo dos séculos? A maldição reservada aos piores malfeitores da época vira uma benção que irradia através dos tempos. “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim. Jesus assim falava para indicar de que morte iria morrer” (Jo 12,32-33).
A verdade é que o alto da cruz foi palco do gesto mais eloquente e grandioso que já marcou e marcará toda a história. À violência furiosa e gratuita contra um inocente, perpetrada pelas autoridades religiosas e políticas daquele tempo, Jesus responde com o perdão igualmente gratuito, mas temperado pela bondade. Em meio a dores insuportáveis e ao sufocamento da morte, o Filho de Deus não só se compadece dos próprios algozes, como ainda por cima procura justificar sua ação revestida de feroz atrocidade: “Pai, perdoai-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). A vingança daquele que veio revelar o rosto do Pai, transpassado no madeiro, consiste no perdão. Numa palavra, o Deus “Abba” revela-se amor, compaixão misericórdia, mesmo diante da maior injustiça. Não há pecado capaz de superar sua infinita magnanimidade.
Daí a faísca: um relâmpago efêmero, fugaz, mas infinitamente luminoso. Como no campo magnético da energia elétrica, negativo com positivo geram luz. Uma luz tão radiante e cheia de esplendor que haverá de se difundir, iluminando-os, todos os recantos do Universo e da História. Descerá até a região dos mortos, às reentrâncias mais tenebrosas, para converter a escuridão em dia ensolarado, o pecado em graça, a escravidão em liberdade, o desespero em nova esperança. Sopro algum de vento, tormenta nenhuma e nenhuma chuva ou nevasca, por mais e fortes e torrenciais que venham a ser, poderão apagar o brilho desse raio ao mesmo tempo minúsculo e colossal. Não só o centurião incrédulo passa a crer (“verdadeiramente esse homem era Filho de Deus”, Mt 27,54), mas esse facho de luz se estenderá por toda parte, até os confins da terra e o fim dos tempos, levando seu brilho a centenas de milhões de outros corações atribulados.
Como toda árvore, entretanto, também a cruz, antes de crescer para cima, antes de respirar o ar livre, antes de buscar o céu azul e antes de florir e produzir frutos – cresceu para baixo, mergulhou as raízes nas entranhas da terra úmida e escura, de onde extraiu os ingredientes para nutrir-se. Antes da liberdade e da vibração da vida, conheceu a escravidão e as correntes que aprisionam o ser humano ao solo. Antes de se tornar uma borboleta exuberante de cores e beleza, experimentou de perto a condição dos vermes que rastejam pelo chão, que mexem no lixo, viram e reviram os restos, para comer daquilo que outros rejeitaram. Antes de erguer no vazio seu grito ao Pai e entregar-Lhe o espírito, caminhou passo a passo, ombro a ombro, com os migrantes e refugiados, os famintos e sedentos, os pobres e excluídos, os vulneráveis e descartáveis – enfim, todos “os condenados da terra” (Frantz Fannon). “Ele tinha a condição divina, porém não se apegou a sua igualdade com Deus; ao contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo (…), humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz (Fl 2,6-8).
Diante disso não será exagero afirmar que, antes da ressurreição e da glória, é na própria cruz que o Filho se revela e revela o rosto do Deus. Rosto do pai que espera o “filho pródigo” e corre ao seu encontro de braços abertos: em lugar de recriminá-lo e diante de seu arrependimento, manda vesti-lo com as melhores roupas e prepara-lhe uma grande festa, um banquete, “porque esse teu irmão estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi encontrado”. (Lc 15,1-32). Ou será que não seria lícito dizer que, pela experiência do madeiro maldito, em Jesus a ressurreição como que precede a morte. O Ressuscitado encontra-se potencialmente na obra, nas palavras e na entrega total do Filho. No abismo e aparente indiferença do silêncio do Pai, frente à sua angustiada prece no Getsêmani, Jesus mergulha no escuro da fé, confiando naquele que o enviara, lança-se em seus braços mesmo sem o vislumbrar. Crê sem ver! Vence a morte no sofrimento do próprio patíbulo, pois tanta luz e tanto brilho não podem ser banidos da face da terra e da história. A faísca/raio do amor, do perdão e da misericórdia que brilha desde o alto da cruz, de tão inesperada e inusitada, aponta decididamente para a vitória da Ressurreição, da glória e do Reino sem ocaso.
Pe. Alfredo J, Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, 1º/04/2023