NÃO VOS ESQUEÇAIS DA HOSPITALIDADE
A frase é extraída da carta aos Hebreus. “O amor fraterno permaneça. Não vos esqueçais da hospitalidade porque graças a ela alguns, sem o saber, acolheram anjos” (Hb 13,1-2). A carta refere-se ao encontro entre Abraão e os anjos do Senhor no Carvalho de Mambré (Gn 18, 1-15). Sentado à entrada da própria tenda, o patriarca vê três homens que se aproximam. Logo eles serão reconhecidos como anjos e mensageiros de Deus e, como tal, trazem a boa notícia para o velho casal. Sara, mesmo estéril e já com idade avançada, iria ter um filho que haveria de garantir a dupla promessa: de uma terra prometida, por uma parte, e de uma grande descendência, por outra.
Hospedar estranhos é abrir-se sem reservas ao “novo”. E novo, justamente por ser desconhecido, costuma ser causa de temor e tremor. Imprevisto e imprevisível, pode descortinar horizontes alvissareiros, sim, mas pode também significar um passo perigoso rumo ao abismo. Sonhar com o novo é uma incógnita temerária, pois o sonho pode converter-se em pesadelo. Ambos – sonho e pesadelo – são filhos do sono, quando não dispomos de nossas faculdades de raciocínio. Mais ou menos como jogar com o prêmio da sorte ou apostar no destino. Não há como manter o controle das rédeas.
Nos tempos que atravessamos, são inúmeros os estranhos e diferentes que batem às nossas portas. Quase a cada dia tropeçamos com “os mil rostos do outro”. Novas pessoas, povos e culturas passam a fazer parte da imensa multidão dos migrantes e refugiados. Hoje em dia praticamente todos os países da terra estão envolvidos com o fenômeno da mobilidade humana, ou como lugar de origem, lugar de destino ou lugar de passagem – quando não duas ou três coisas ao mesmo tempo. Os rostos, rotas e histórias dos milhões de cidadãos que atualmente erram sem raiz e sem rumo pelas estradas do globo, ou habitam fora do país em que nasceram, formam um xadrez inextrincável. E o mapa desse cenário torna-se, a cada ano, mas intenso, mais diversificado e mais complexo.
Números, dados, tabelas e estatísticas se multiplicam de forma incontrolada. Pesquisas e estudos procuram sistematizar as causas, consequências e implicações de tantos e tamanhos deslocamentos. Mas a realidade é sempre mais funda e abrangente do que podem alcançar as distintas ciências humanas, aliás, do que será capaz de abarcar a própria razão. Valem, claro, as amostras e tendências, mas permanece sempre o perigo de distorcer os fatos e imagens. De toda maneira, na exata medida em que nunca houve tantos migrantes, refugiados socioeconômicos e/ou climáticos, deslocados internos, viajantes e peregrinos em geral, também nunca houve tanto acúmulo de conhecimento sobre as migrações. Entrevistas, testemunhos e abordagens temáticas tentam dissecar, decifrar e definir tais fluxos e acontecimentos. De resto, os pés que pisam vários caminhos somam lições e sabedoria ainda indecifráveis.
Forasteiros e viandantes, de um lado, e o dever de hospedagem, de outro, se revelam presentes em toda a história da humanidade. Prova disso são as grandes obras literárias, tais como a narrativa Javista do Antigo Testamento, a Odisseia e Ilíada de Homero, a Eneida de Vergílio, a Divina Comédia de Dante Alighieri, Dom Quixote de Cervantes, entre outras. Fuga êxodo, exílio e diáspora são conceitos que se cruzam e recruzam em tais relatos. Nos tempos modernos, porém, com a Revolução Industrial, a filosofia liberal e o modo de produção capitalista, a mobilidade humana ganha novas características.
Os migrantes passam a sê-lo não tanto como prisioneiros de guerra, mulheres de troféu ou escravos, e sim como trabalhadores de reserva cuja presença massiva tem dupla serventia: diminuir a força organizativa de quem está empregado, por uma parte, e consequentemente aumentar os lucros e a acumulação do capital, por outra. Por isso é que, em especial desde o século XIX, os estudiosos cunharam a expressão “exército de reserva”, podendo este adquirir dimensões nacionais, regionais e internacionais. Daí que o ato de migrar e a hospedagem, nesse caso, perdem romântica que mantinham. Nações, empresas e traficantes passam a disputar ou rechaçar a mão-de-obra de acordo com a necessidade de novos trabalhadores. E estes se veem “tocados” de um lado para outro, em troca das migalhas que sobram na mesa dos poderosos.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 05/07/2024