Eu só queria trabalho e pão – lembrança de 1 mês do brutal assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe
Nasci na República Democrática do Congo, continente africano. Meu nome era Moïse Mugenyi Kabagambe, tinha 24 anos, morava com minha mãe e minha irmã. Estou neste país porque uma mistura de pobreza e violência me expulsou de minha pátria, onde permanecem enterrados os ossos de meus queridos antepassados.
Fugi e vim em busca do grande Brasil, afamado por seu coração acolhedor. Esperava encontrar a paz, o trabalho e o pão para mim e toda minha família. Procurei transformar a fuga em nova busca, superado feridas, mágoas e cicatrizes. Sonhava com uma nova terra, em que eu pudesse encontrar um solo amigo e pátrio.
Aqui, após tantas penas, aflições e dificuldades, encontrei algo para fazer. Comecei a trabalhar, precariamente, sim, entretanto não estava de braços cruzados. Mas a violência e a morte me esperavam na esquina, ou melhor, no quiosque à beira da praia, na Barra da Tijuca, na “cidade maravilhosa” do Rio de Janeiro.
De onde vem tanto ódio e agressividade contra os congoleses, contra os imigrantes, contra os estrangeiros, contra os que falam outras línguas e sobretudo têm a pele negra? De onde vem o racismo, o preconceito e a discriminação? Por que nos olham com olhos enviesados, e nos atiram palavras cheias de veneno?
Não, não foram apenas alguns rapazes que me tiraram a vida. Há muito vemos que o ódio e a violência contaminam o ar. Respira-se um clima pesado de divisão e intolerância – um “nós” contra “eles” – que toma conta de todos, a começar pelas mentiras de um desgoverno que, em lugar de proteção e acolhida, semeia discórdia e ataques. Depois a mídia, as redes sociais e muita gente enfurecida parece se abater sobre nós, negros e estrangeiros.
Da fúria do Congo, passei a conhecer a fúria de uma nação dividida, polarizada, fragmentada. Por toda parte, escombros, ruínas e cinzas. E, ainda por cima, marcada pela pandemia, com seu rastro macabro de mortes, horrores e enlutados. Por isso me mataram, senhores e senhoras, morri porque lutei para viver. Morri porque busquei sonhos, com fé e esperança. Morri para que outros migrantes possam ter vida e direitos, com justiça e paz.
Que a luta por trabalho e casa, saúde e pão não seja tão amarga para outros congoleses, sírios, bolivianos, angolanos, venezuelanos, haitianos, afegãos, e tantos outros migrantes, provenientes de distintos países. Foi o ódio cego e irresponsável que tiraram a minha vida. Foi uma sociedade indiferente e desgovernada que me tirou a vida. Foi a lei das milícias que caiu como um raio sobre minha cabeça. Mas os migrantes, pouco a pouco, passo a passo, haverão de mostrar que não querem outra coisa senão trabalho, moradia, saúde, pão, paz e justiça para si e suas famílias.
E para todos os países, sejam eles de origem, de trânsito ou de destino. Nomes, rostos, línguas e histórias diferentes haverão de mostrar que as diferenças, longe de nos dividir e nos empobrecer, só podem nos enriquecer. Em nome dos migrantes de todo mundo, lutamos por uma cidadania que esteja acima de qualquer fronteira. O mundo é a pátria de cada pessoa humana, pois é ele que nos dá o pão e a paz.
Não condeno apenas as mãos que me golpearam até a morte. Condeno os que jogam os pobres e migrantes contra os próprios pobres e migrantes, com suas leis de segurança nacional, com sua economia voltada para lucro, consumo, acumulação e exclusão social. Condeno milícias e milicianos. Toda pessoa humana tem direito a migrar, a trabalhar e a lutar por seu sonho de melhor futuro. Vida em primeiro lugar!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM
São Paulo, 24 de fevereiro de 2022