[Pe. Alfredinho] A imagem do bom pastor
Hoje vivemos e nos movemos em uma sociedade majoritariamente urbana. Embora provenha do universo rural, a imagem do Bom Pastor (Jo 10, 11-18), mesmo na cidade, tornou-se conhecida e de fácil entendimento: familiar e amplamente popularizada. Quatro são as principais tarefas e preocupações de um pastor: prover as ovelhas de pasto adequado, combater o risco dos lobos e outros predadores, garantir uma convivência pacífica no interior do rebanho, impedir que se perca qualquer ovelha colocada a seus cuidados. Não é difícil transportar tal imagem, com suas implicações, para a missão do líder social, político, religioso ou cultural.
O pasto adequado. Claro que, em se tratando de uma comunidade humana, não estamos falando só de comida. Está em jogo tudo aquilo que nutre e mantém saudável o corpo, a mente, a psique e o equilíbrio emocional. Isso nos remete ao conceito de “desenvolvimento integral”, abordado de forma particular pelo então Papa Paulo VI, tanto na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, publicada em 1965, ao final do Concílio Vaticano II, quanto na Carta Encíclica Populorum Progressio, de 1967. “O desenvolvimento é o novo nome da paz” – afirma o último documento, apelando às “situações cuja injustiça brada aos céus”, ao “mundo solidário”, à “fraternidade dos povos” e ao “diálogo entre das civilizações”.
Diálogo tanto mais necessário quando a humanidade atravessa um período sombrio não apenas do ponto de vista sanitário, com o descontrole da pandemia do Covid-19, mas também do ponto de vista político e econômico, com o retorno da desigualdade social e da fome. Sem falar de um contexto agravado, ainda mais, pelo crescimento das tensões, conflitos e guerras, bem como pelo ressurgimento da intolerância, de uma polarização extremada e da violência em suas mais distintas formas. A provisão de “pasto adequado”, em tais circunstâncias, exige “rápidas e profundas mudanças”, para citar uma das expressões da constituição pastoral já citada. Mais do que pensar formas de crescimento a qualquer custo, e não raro em detrimento da preservação do meio ambiente, o imperativo é uma maior e mais equânime distribuição de tudo o que se produz sobre a terra com o trabalho humano.
O combate aos predadores. A defesa do rebanho/sociedade requer um conhecimento prévio de seus possíveis inimigos. Emergem duas questões entrelaçadas. O modo de produção capitalista, revestido pela filosofia de corte liberal ou neoliberal, move a economia globalizada através do motor do lucro e da acumulação de capital. Em decorrência direta dessa primeira constatação, tropeçamos com a segunda. Os empreendedores usam e abusam, até as últimas potencialidades, seja dos recursos da natureza, seja da força de trabalho humana, para não falar do patrimônio cultural e religioso herdado pela humanidade ao longo dos séculos. Tudo vira mercadoria, tudo é passível de compra e venda, tudo se converte em fonte de maior renda e/ou riqueza. Importa desfrutar aqui e agora de um “viver bem” que, embalado pelo consumismo feroz e exacerbado, contradiz o conceito antropológico de um “bem viver”.
Disso resulta a contaminação das águas (mares, rios, lagos e geleiras); a poluição visual, mental e auditiva das cidades e campos (lixo, ruídos, rumor e barulho por todo lado); o desmatamento, a devastação e a desertificação do solo; a crescente emissão de gás carbônico, o derretimento de geleiras eternas e o aquecimento global. Cenário nada animador que, por sua vez, compromete as diversas espécies de fauna e flora – a biodiversidade – além de expor a riscos sérios e cada vez mais frequentes as populações vulneráveis de todo o planeta, como também o nível de vida das gerações futuras. Cada planta e cada animal que se extinguem da face da terra, a médio e a longo prazo, diminui a qualidade da vida humana. A pandemia do novo coronavírus, junto com outras epidemias recentes, constituem a prova cabal de que o meio ambiente varrido, devastado e degradado se volta contra o próprio ser humano. “Deus perdoa sempre, o homem às vezes, a natureza nunca” – diz o provérbio popular.
A convivência pacífica. Não é tarefa fácil conviver pacificamente. O joio e as ervas daninhas costumam se insinuar insidiosamente por entre as espigas de trigo. Vírus e vícios, vermes e venenos contaminam o ambiente, deixando o oxigênio raro, escarço ou pesado. “O outro é o inferno”, dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre. Porém, se a coexistência com o mínimo de arranhões basta aos animais, o ser humano é chamado a um salto qualitativo. Deriva dessa exigência o conceito de convívio. Este, diferentemente da convivência, tem implicações bem mais profundas. O convívio exige a difícil passagem da multiculturalidade à interculturalidade. Não basta juntar os corpos, aglomerar-se, coexistir uns ao lado dos outros. É necessário ir além. O verdadeiro convívio traz embutida a necessidade do confronto de ideias, do intercâmbio, da depuração e purificação constante de valores de ordem cultural ou religiosa. Na expressão do Papa Francisco é como superar a “globalização da indiferença” em vista da “cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade”.
Enquanto a mera convivência pode gerar “guetos”, com populações diversificadas e justapostas, até mesmo em bairros separados, o convívio produz um tipo de existência mais rico, exigente, e harmonioso – a “comunidade”. O gueto isola-se, fecha-se em si mesmo, centra-se sobre o próprio umbigo, mantendo uma comunicação superficial e convencional. A comunidade, ao contrário, permanece aberta a novos encontros e experiências. Tem consciência de que a troca de saberes e sabores faz crescer e provoca um mútuo amadurecimento. A mesmice do gueto, pobre, rotineira e homogênea, contrasta com a diversidade plural da comunidade. As diferenças culturais, ao invés de nos empobrecer, nos complementam e enriquecem. E quanto mais o intercâmbio rompe as ondas superficiais e agitadas, chegando às correntes profundas da alma humana, maior tende a ser o enriquecimento recíproco. O “outro, diferente ou estrangeiro” deixa de ser o inferno em vista da profecia de que “haverá um só rebanho e um só pastor”.
O cuidado com todos e cada um. Por mais furioso, devastador e letal que seja o avanço do novo coronavírus, sua aparição inesperada e contagiosa fez-nos despertar para essa noção de cuidado. Não se trata de algo que possa, sem mais, ser dado por descontado. Nem todos e nem sempre estamos dispostos a cuidar de quem convive ou trabalha sob o mesmo teto. Ao contrário, como demonstrou o isolamento social e a quarentena, por vezes a demasiada proximidade desgasta as relações humanas, enferruja as peças dos laços que nos unem, provocando ruídos – os quais não raro se ocultam em silêncios de chumbo, em não-ditos envenenados e em olhares oblíquos. Mas a mesma proximidade também será capaz de descortinar potencialidades imprevistas de amor, carinho, ternura e atenção. Nestes tempos, falam as telas, as janelas e as varandas, enquanto no interior das casas e dos grupos familiares, o terreno tende a se tornar escorregadio, ambíguo e movediço. No espectro entre os dois extremos da violência e do cuidado, as relações podem nos estreitar ou nos distanciar ainda mais.
Da mesma forma que nos separou de vizinhos e impediu novos contatos, a pandemia também nos encerrou forçosamente dentro de quatro paredes. Nesse cenário fechado, coisas boas e ruins acabam emergindo da tradição familiar. Voltamos à alternativa do item anterior, ao confrontar convivência e convívio. Das duas uma: ou o estar juntos se converte em um verdadeiro tesouro a ser desfrutado pelo grupo familiar, ou se converte em pesadelo de ruídos e silêncios viciados. A diferença se impõe justamente pelo cuidado em buscar a “ovelha perdida”, ou em não perder ninguém! Oportunidade sem igual para medir a energia de arcar com a dinâmica desse processo. Processo que se inicia com a capacidade de colocar-se no lugar do outro. O que significa sair de si mesmo, deixar o próprio ninho para entrar na esfera de interesses de outra pessoa? Não, uma vez mais, a tarefa não pode ser dada por descontada. Exige renúncia, empenho e persistência. Essa dinâmica do cuidado costuma se aprofundar nos momentos-limites da existência humana: amor, separação, doença, invalidez, dependência, morte e… pandemia! É então que o cuidado desperta e se expande com naturalidade, ou se apaga de uma vez por todas!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 25 de abril de 2021.