BARCOS À DERIVA
Nos tempos modernos ou pós-modernos, ruíram os pilares que sustentavam determinadas referências históricas, culturais ou de tradições familiares. Termos como razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia perdem a aura de deuses, convertendo-se em meros ídolos. As certezas são substituídas pelas dúvidas, as verdades cedem o lugar a hipóteses ou mesmo opiniões. Os astros luminosos se apagam na noite escura, as placas de trânsito desaparecem da estrada e o chão firme se rompe sob os pés. Tudo parece sacudir, tremer, vacilar, como em um terremoto imaterial, mas nem por isso menos nocivo. Daí o resultado de multiplicarem-se o medo, a inércia, a depressão e a sensação de vertigem. Não se trata de uma época de mudanças, e sim de uma mudança de época. Uma transição, mas transição estranha, incógnita: sabemos de onde viemos, mas desconhecemos para onde nos dirigimos. Encontramo-nos sobre uma espécie de ponte pênsil, na travessia de um rio turbulento, de correntes descontroladas.
Desmanteladas as seguranças que nos mantinham de pé, desfeitos os pontos sólidos que marcavam nossos passos, instala-se uma espécie de abismo sem fundo ou de horizonte frio, opaco e indefinido. Cabe aqui o adjetivo “líquido”, cunhado por Zygmunt Bauman, para caracterizar a sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo que a terra se desfaz, o céu permanece indiferente. É como se subitamente tivéssemos ficado sós, órfãos, vazios, errantes. Por todos os lados do nosso edifício desabitado, brotam as ervas daninhas da insegurança, da incerteza e da inquietude. Destruindo os valores e sinais que nos orientavam no passado, arruinamos igualmente o presente. Ao mesmo tempo que jogamos nuvens sombrias sobre o futuro. O horizonte de converteu num campo nublado.
O temor e tremor da solidão leva a buscar refúgio fora de nós mesmos. Cada um como que se tornou o pior inimigo de si próprio. A companhia que mais tememos é nosso “eu” inquieto e irrequieto. Coisa que nos leva à busca obsessiva de pessoas, de gente, seja quem for… da multidão. Esta se converte, contemporaneamente, em lugar para se esconder, mas também em momento para se manifestar. Escondemos o rosto no oceano anônimo de outras faces. Todos aflitos e apressados, sem saber exatamente para onde vão e o que buscam. Exprimidos na multidão, borram-se os contornos de uma identidade enferma e fragmentada. O grande rio e a torrente dos transeuntes tudo baralha e confunde, tudo distorce e apaga.
Por outro lado, e de igual maneira, passamos a compensar o vazio com a posse de “coisas”. Quanto maior a quantidade, melhor podemos nos ocultar a nós mesmos. As sucessivas ondas da moda nos conduzem a um consumismo exacerbado. Enchemos a casa, o quarto, o armário e as gavetas com a maior variedade de objetos, não raro repetidos. Fixamo-nos neles como se representassem tábuas de salvação. Compramos certos produtos que, antes mesmo de desfeito o embrulho, já se converteram em lixo. Nem nos damos conta que quanto mais abarrotados de “coisas”, mais afastamos permanecemos das pessoas e de nós mesmos, para nem falar de Deus. Mercadoria e multidão funcionam como altares onde oferecemos aos deuses/ídolos cada minuto, cada hora e cada dia de nosso tempo atribulado.
Entretanto, a multidão também o terreno onde tentamos nos manifestar. Não com voz, rosto e olhar próprios, mas no espectro diabólico de grupos que primam pelo ódio e pela fúria. Sem paradigma e sem princípios de orientação, facilmente seguimos o primeiro rebanho que aparecer no caminho. E o rebanho tende a baixar o nível de reflexão e do bom senso geral, a bestializar cada indivíduo, o qual, por sua vez, também facilmente se torna um desconhecido selvagem. Quando solitário, revela toda sua fraqueza e timidez; na multidão cega e ensandecida, grita forte, bate os punhos e devasta o que encontra pela frente. A falta de referências e de relações sólidas brutaliza até os limites da insanidade. Com relativa frequência, se transforma num barco à deriva em meio às tempestades socioeconômicas ou político-culturais. Por isso seus gritos, ofensas e ataques bestiais, por mais inflamados que sejam, não passam de braçadas de náufragos que, sem bússola e sem enxergar o farol nem porto, tentam a todo custo escapar das águas turvas e bravias.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 25/09/2024