Atritos no Planalto, penúria na Planície

A discordância entre os três poderes da democracia brasileira – Executivo, Legislativo e Judiciário – vem criando atritos cuja conta é paga pela população de baixa renda. O conflito primordial e mais sério é o que ocorre entre a liberação das emendas parlamentares por parte do governo, de um lado, e, de outro, o ritmo lento das votações para o funcionamento regular da administração pública. No centro das desavenças está o controle sobre o orçamento da União. Em outros termos, quem possui a chave do cofre? Quem possui a última palavra sobre a distribuição (ou concentração) dos impostos, taxas e dividendos arrecadados em todo território nacional? No fundo, quem efetivamente governa? Afinal de contas, como diz o ditado popular, quem paga a conta tem o direito de escolher o cardápio! E ainda por cima, Câmara e Senado podem aprovar algo que, posteriormente (ou concomitantemente) o Supremo Tribunal Federal desaprova. Como encontrar um terreno sólido onde firmar os pés?

Diante das câmeras, holofotes e microfones desfilam sorrisos abertos e discursos recheados de promessas. Ao mesmo tempo, porém, por debaixo dos panos, os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo vão fazendo, desfazendo e refazendo acordos que acabam sendo rasgados na prática política. Atrás dos escombros, corre o Ministro da Fazenda, tentando costurar alguma coisa que mantenha um mínimo de governabilidade. Em meio a esses mandos e desmandos, como se já não bastassem os salários estratosféricos e penduricalhos dos parlamentares e juízes, cada voto tem seu preço. Eleitos e pagos para legislar e manter vivo o funcionamento da máquina pública, por que utilizar outra fonte de renda para o “toma lá dá cá” do balcão de negócios? As famigeradas emendas parlamentares tornaram-se a moeda de troca no braço de ferro entre governo e centrão, pois sequer dá para falar de oposição no sentido positivo do termo. Em lugar de verdadeira oposição, instalou-se aí um grupo que faz o governo de refém, como se já não bastasse sê-lo dos juros da dívida pública ou do mercado financeiro nacional e internacional! Cada passo, cada decisão, cada decreto, cada medida provisória ou cada projeto de lei tem seu preço – isso para sequer falar dos rendimentos legais! Pior, nem sempre o pagamento garante a “mercadoria”!

Desse braço de ferro entre um lado e outro, decorrem as votações a passo de tartaruga e os consequentes atrasos. Decorrem igualmente as chantagens de ambos os campos em litigio. Quem perde com isso? Por uma parte, os setores produtivos, em particular os pequenos, micro e médios produtores, na medida em que não dispõem de regras claras para os investimentos a serem efetivados. Por outra parte, a população mais pobre e excluída que, ao invés de políticas públicas sólidas, duradoras e confiáveis, contam apenas com as migalhas que caem do Planalto: sempre temporárias, efêmeros, provisórias. O que nos faz remontar aos favores da antiga Senzala, os quais, diferentemente dos privilégios da Casa Grande (sagrados e intocáveis), dependem do humor do senhor de plantão. Com frequência tais favores, especialmente quando pretendem se elevar à condição de direitos adquiridos, se convertem em chicote, em questão policial ou em repressão.

Nesse faz-desfaz-refaz, como pensar em políticas públicas de longo prazo? Como garantir suportes sociais para o trabalho, a educação, a saúde, a moradia, a segurança, a aposentadoria?… Nunca se sabe ao certo o que poderá vir do Planalto. Na Planície, a sensação é a de permanente insegurança, incerteza, inquietude não só quanto ao sustento de si mesmo e da família, mas sobretudo quanto ao futuro. Onde as estrelas que podem nos orientar na noite escura? Onde os marcos que podem ajudar a discernir o rumo correto da estrada? Os a pedra sólida em que firmar os pés para um novo passo? Prevalece a política do aqui e agora, do imediatismo e da improvisação. Em termos mais concretos, a política voltada não para as próximas gerações, e sim para as próximas eleições, como dizia alguém.

O resultado disso é o acirramento da pirâmide socioeconômica. No Planalto e suas dependências crescem os milionários e bilionários, com dinheiro e influência. Na Planície e em seus porões, periferias e fronteiras, cresce a carência e a penúria, acrescidas de uma instabilidade crônica. Com razão, vemos aumentar o número de migrantes, de desempregados e subempregados, de indivíduos e famílias morando na rua. A desigualdade, as assimetrias e a discrepância cavam um fosso sempre mais profundo entre o pico e a base da pirâmide, hoje agravado pelos efeitos das mudanças climáticas. As metáforas de Planalto e Planície podem se estender a várias regiões e países do mundo inteiro.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM, São Paulo, 04/04/2024

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