O tempo para o padre José Marchetti

Na sociedade moderna ou pós-moderna – marcada pela alucinada velocidade tecnológica e pela conectividade ininterrupta – talvez a experiência do tempo seja a melhor forma para falar do Pe. José Marchetti. Não se trata de nenhum esboço de biografia, apenas de uma reflexão a partir de sua figura como missionário scalabriniano. Sabemos que Pe. Marchetti praticava o voto de “não perder mais de 15 minutos por dia”. Está em jogo o uso do tempo, o qual, para os apóstolos de Jesus pertence simultaneamente ao Pai e aos pobres.

Não será exagero avaliar o conceito de tempo a partir de uma tríplice dimensão: tempo como latifúndio, temo como investimento e tempo gratuito. Quando nos referimos a dimensão, porém, desnecessário acrescentar que não estamos falando de gavetas fechadas e incomunicáveis, e sim de noções que, embora diferenciadas, se misturam, se entrelaçam e se comunicam entre si, podendo até se complementar em determinadas circunstâncias. Feita essa ressalva e advertindo que não há contornos fixos entre as distintas dimensões, tomemos uma a uma.

O tempo latifúndio é aquele cercado, como propriedade privada, mas com frequência vazio e improdutivo. Tempo considerado de Fulano de Tal e de mais ninguém. O proprietário costuma erguer cercas para evitar dividi-lo com o outro, o estranho o diferente. Como diz São Paulo, está sempre “ocupado em não fazer nada”. O tempo é utilizado de forma egocêntrica, dedicado à busca dos interesses e do prazer de quem o detém. E este termina dedicando horas exageradas e preciosas ao carro, à televisão, ao celular, às contas bancárias, à bolsa de valores e à cotação do dólar, ao lazer pessoal, e tantas outras preocupações. 

Mais do que tempo de ocupação positiva e fecunda, os dias escorregam por entre os dedos em meio a grandes preocupações com os bens, propriedades ou simplesmente caprichos. Tempo como um deserto infértil, e igualmente sem horizontes definidos. O problema é que, como tudo o que se acumula, também o tempo apodrece. Isolado e oco de significado, desfrutado de forma totalmente egoísta, o tempo se converte em tédio, que vem a ser a falta de sentido para o que se faz com os minutos, as horas, os dias e os anos. Nada produzimos com esse latifúndio do tempo e tampouco permitimos que outros possam produzir. Sofisticados sistemas de segurança isolam o tempo dos pretensos “intrusos”.

O tempo investimento é aquele que busca lucro e acumulação de benefícios, sendo cedido tão somente com a certeza de rendimento imediato. Investe-se para aumentar, de algum modo, a própria imagem. O tempo é distribuído mediante cálculos precisos, matemáticos. Converte-se o decorrer das horas em mercadoria, e esta é passível, de compra e venda. Neste caso “perde-se” tempo apenas com as pessoas que podem retribuir com acréscimo, seja em forma de honra ou de influência. Quanto mais a pessoa é capaz de “pagar” por esse bem distribuído, mais o investidor estará disposto de dedicar-lhe seu tempo. 

A expressão “time is money” – atribuída a Benjamin Franklin – tem aqui seu significado mais utilitário. Ou seja, investir tempo equivale a investir dinheiro e, em particular na economia capitalista, dinheiro chama dinheiro. Transferimos para o cotidiano a mentalidade mercantilista, tanto no uso do dinheiro quanto no uso do tempo. Não é sem razão que no início do liberalismo econômico – do “laissez faire” – emergiu o utilitarismo filosófico, com seus porta-vozes, entre eles, além do já citado B. Franklin (1706-1790), Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). A conclusão é a de que tempo perdido é tempo investido com vistas a novos ganhos. Tempo que abre portas para novas oportunidades de sucesso. Ou, se quisermos, tempo utilizado de forma oportunista. O tempo se metamorfoseia em instrumento, meio que conduz a um fim bem preciso: aumentar o capital, seja este de que tipo for.

O tempo gratuito, como demonstra a própria expressão é aquele oferecido gratuitamente. Não há cálculos prévios, apenas doação diante de determinadas situações. Inverte-se a matemática clássica: quanto mais se oferece, mais se tem para oferecer. O uso do tempo obedece a uma sensibilidade toda particular. A alegria da presença e da solidariedade para com alguém substitui o desejo de acumular dividendos. O ato de doar o tempo, em lugar de meio, torna-se um fim em si mesmo. Ao invés de uma caridade prima por dar coisas, estamos diante de uma sensibilidade que se dá a si mesmo. Dar coisas, aliás, não raro é uma fórmula para livrar-se dos estranhos, dos viajantes ou dos famintos que batem à porta.

Tempo gratuito é o tempo do “profeta itinerante de Nazaré”. Tempo que, sendo uma dádiva do Pai, pertence por isso mesmo aos pobres, aos desvalidos, aos excluídos, aos pecadores, aos doentes, aos pequenos, aos marginalizados, enfim, à ovelha perdida. Em outras palavras, aos que têm sua vida ameaçada pelas mais diversas circunstâncias. Baste-nos a esta altura citar um pequeno trecho do relato evangélico de Mateus: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade. Vendo as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9, 35-36).

Numa palavra, tempo gratuito é o tempo da compaixão. Da escuta, da atenção e do diálogo. Tempo gratuitamente “perdido” com aquele que necessita de um olhar, um toque, uma palavra, uma visita, uma presença!… Tempo que se detém diante da dor e do sofrimento. E de fato, a caravana de Jesus jamais atropela quem grita por socorro. Ao contrário, interrompe a marcha e entra em diálogo com a situação encontrada. Um caso emblemático desse comportamento é a parábola do Bom Samaritano. Enquanto o sacerdote e o escriba – ambos funcionários do templo e da religião farisaica – ignoram o “caído” à beira da estrada e da vida, o estrangeiro da Samaria se detém e, além das coisas que traz consigo, coloca-se ele próprio à disposição daquele que tem a vida ameaçada (Lc 10, 25-37). 

A conclusão do Mestre não poderia ser outra: “vai e faz a mesma coisa”! O tempo, se e quando oferecido de graça, torna-se critério de salvação. Salvação que depende menos da frequência ao templo do que do compromisso para com os “caídos”. De resto, é o que se nota de forma ainda mais eloquente na passagem sobre o Juízo Final (Mt 25, 31-46): “eu era estrangeiro e vocês me receberam em casa”, ou ao contrário, “eu era estrangeiro e vocês não me receberam em casa”. A entrada no Reino de Deus está condicionada à atitude para com os mais necessitados: famintos, sedentos, migrantes, nus, doentes, prisioneiros!… Hoje a lista prosseguiria num desfile de rostos numerosos e desfigurados, nos quais “deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor que nos questiona e interpela”, como se pode constatar no documento conclusivo da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, A Evangelização no presente e no futuro da América Latina (números 31 a 39).

Depois de discorrer sobre essas três formas de considerar o tempo – latifúndio, investimento e gratuidade – podemos voltar ao Pe. José Marchetti. Seu voto de “não perder mais de 15 minutos por dia” revela a consciência de que o tempo, para o missionário scalabriniano, sendo um dom ou uma dádiva de Deus, deve pertencer aos seus filhos mais necessitados, no caso os migrantes, particularmente os órfãos daqueles que tinham perecido na longa e arriscada travessia. A intensa intimidade com o Pai não o deixava “desperdiçar tempo” frente às penas e carências de tantos irmãos sem raiz, sem família, sem rumo e sem pátria.

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

São Paulo, 25 de novembro de 2022

 

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