A Palavra de Deus não está algemada

 

Em pleno contexto da modernidade tardia, ou pós-modernidade, os olhos se voltam novamente para a Palavra de Deus. Não obstante o progressivo secularismo, ao lado da indiferença ou do ateísmo ostensivo, os debates em torno da religião vem ganhando amplo terreno, tanto nas redes digitais quanto nos meios de comunicação social e na opinião pública. Terreno que tende a ser mais caloroso e acirrado em tempos de processos eleitorais. Não é diferente com as eleições de 2022 no Brasil. Recorre-se às páginas sagradas e/ou aos espaços religiosos, em geral, ou para demonizar os opositores e adversários ou para justificar as próprias palavras e comportamentos. Chegam a ser obsessivos os esforços para “aprisionar” a palavra, fazendo de tudo para que ela legitime qualquer tipo de visão, por mais sacrílega que seja. Até mesmo o caos e a barbárie, a violência e o negacionismo recebem a benção dos livros sagrados.

Diante de tamanhas e tão frequentes distorções, convém uma vez mais e sempre recordar que a Palavra de Deus jamais se esgota no plano meramente histórico. Distintas e convergentes são as fontes da palavra para os cristãos: as páginas bíblicas, a beleza e os segredos da criação, a voz silenciosa do coração humano e o grito dos pobres e oprimidos, excluídos e marginalizados. Ela emerge, contemporaneamente, do chão, do alto, do interior, do livro e da natureza. Raio de luz que rasga a noite da escuridão, abrindo veredas e horizontes sempre novos. Por isso é que nunca se pode cristalizar um determinado projeto socioeconômico e político-cultural. Ela sempre chama a história humana a se mover e dar um passo à frente.

Deus irrompe na trajetória da humanidade a partir do solo regado de pranto e suor, sangue e lágrimas, quando são violados os direitos da pessoa humana; a partir dos anjos, mensageiros e profetas bíblicos, que denunciam a opressão e as injustiças, ao mesmo tempo que e anunciam a “Jerusalém celeste”; a partir das tragédias e catástrofes que se abatem sobre os povos quando a “nossa casa comum” é agredida e devastada, impedindo à natureza, como mãe, o direito e o dever de multiplicar a vida em todas as suas formas, a biodiversidade; a partir do mais íntimo de cada pessoa quando, em sua consciência, se acende uma luz amarela, apontando o dedo sobre os males e penas que seu comportamento pode gerar. 

Em outros termos, a vontade de Deus faz soar sua voz altissonante, tanto mais eloquente quanto mais silenciosa, para corrigir os rumos equivocados de tantos experimentos humanos. Entra em cena, neste momento, a frase do apóstolo Paulo dirigida a Timóteo: “a Palavra de Deus não está algemada” (2Tm 2,9). Ela nos chega do ventre da terra, do alto, do entorno e do interior, porém, de forma particular nos chega do amanhã esperado com ânsia. Historicamente falando, não vem dos tronos, templos e palácios, não vem dos poderosos que tudo pretendem saber, e por vezes sequer vem das autoridades constituídas justamente para divulgar a Boa Nova do Evangelho. Vem, antes, como estrangeiro inesperado, cuja voz, valores e cultura, tal como a Palavra, não se deixam sequestrar, não se deixam manipular, e tampouco se deixam instrumentalizar, nem por desejos, instintos e interesses egocêntricos, nem por tiranos e tiranias.

Como lâmina fina e afiada, ela desvela todas as máscaras da hipocrisia, desnuda as armaduras da mentira e da falsidade, tira o calçado de toda segurança. Seu brilho escancara luzes e sombras que habitam o ser humano, em seus planos e artimanhas. Vale insistir com São Paulo, a Palavra não é prisioneira de nenhum poder, de nenhuma força terrestre, de nenhum projeto que comece e acabe no arco da história da humanidade. Ela tem raízes no começo dos tempos, mas irrompe a partir do futuro para orientar os passos do presente. Se de um lado os fatos e acontecimentos históricos constituem a matéria prima na construção do Reino de Deus, de outro a Palavra é o cimento que une e costura os fios soltos dos embates e das ações humanas. É ela que, em última instância, e em meios a tremores, terremotos e tribulações, há de empreender a grande marcha para o banquete do Reino, do qual ninguém está de antemão excluído.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 17/10/2022

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