É preciso reconhecer os rostos e histórias das mulheres migrantes – Entrevista com Márcia Maria de Oliveira

Texto: Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

47,9% das cerca de 272 milhões de pessoas em situação de migração internacional são mulheres. Considerando regiões do mundo como América do Norte (51,8%), Europa (51,4%) e Oceania (50,4%), as mulheres são maioria dentre as populações migrantes. Aqui na América Latina, as mulheres são quase metade dentre todas as pessoas migrantes (49,9%).

Esses números, de um estudo da Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, publicado em 2020, não deixam dúvidas: em todas as partes do mundo, as mulheres migram.

Mas, para além destes dados quantitativos, por quais motivos as mulheres migram? Em quais condições as mulheres têm migrado? De que modo a combinação xenofobia-misoginia impacta nas vidas das mulheres migrantes?

Essas e outras questões nos levaram a conversar com Márcia Maria de Oliveira, que é socióloga, doutora em Sociedade e Cultura, pós-doutora em Sociedade e Fronteiras e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima.

Uma das principais especialistas do tema em nosso país, Márcia alerta para uma perspectiva de crescimento das migrações forçadas, ao frisar que “cada vez mais, os deslocamentos são uma imposição na qual a pessoa é forçada a migrar. Trata-se de um paradoxo no qual está garantido o direito de migrar, mas, não está garantido o direito de não migrar. O contexto mundial tem sido caracterizado por uma economia capitalista de expulsão e violência aos mais pobres”.

Neste cenário, Márcia destaca a importância da feminização das migrações que, em suas próprias palavras, “refere-se, acima de tudo, a uma metodologia de estudo e abordagem que reconhece o rosto e a história dos migrantes para além dos números e das cifras quantitativas”.

Integrante de grupo de pesquisa que investiga temas como migrações, tráfico humano e Estudos de Gênero, Márcia chama a atenção para a ampliação de violações de direitos das mulheres e violências de gênero nos processos e fluxos de migração. “É importante referir-se às mulheres migrantes numa abordagem pautada na perspectiva de gênero associada ao conceito de feminização, que compreende tanto o aumento quantitativo das mulheres migrantes, como a mudança dos critérios de análise das dinâmicas migratórias, com enfoque na violência de gênero. A violência contra as mulheres não termina necessariamente com as migrações. Infelizmente, em muitas situações, se reproduz e até mesmo se intensifica nas dinâmicas migratórias”, diz.

Direcionando o seu conhecimento à reivindicação por direitos das mulheres migrantes, Márcia é também assessora voluntária da Cáritas, da Rede Eclesial Pan-Amazônica do Serviço Pastoral dos Migrantes, além de membro do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental.

Essa conjunção entre perspectiva acadêmica e luta social possibilita a Márcia perceber que “na perspectiva das feminização, as migrações, por mais difíceis que sejam, têm representado espaços importantes de libertação das mulheres. As dificuldades enfrentadas nas migrações têm feito com que muitas mulheres se insiram num processo permanente e irreversível de empoderamento feminino que as tornam capazes de enfrentar e combater todas as formas de opressão”.

 

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Em algumas entrevistas e artigos, você discute o conceito de feminização das migrações, como um fenômeno que parece atravessar os diferentes períodos históricos de presença majoritária das mulheres nos processos migratórios. Qual o cenário atual das migrações considerando a perspectiva da feminização?

As migrações internacionais têm se intensificado nos últimos anos e são muitas as causas dos deslocamentos. O fator econômico continua sendo um dos principais motivos de mobilidade para o trabalho e a busca de melhores perspectivas em busca de alternativas de uma vida melhor. Porém, cada vez mais, os deslocamentos são uma imposição na qual a pessoa é forçada a migrar. Trata-se de um paradoxo no qual está garantido o direito de migrar, mas, não está garantido o direito de não migrar. O contexto mundial tem sido caracterizado por uma economia capitalista de expulsão e violência aos mais pobres. A tendência mundial é de aumento crescente das migrações forçadas. 

Nesta conjuntura, a feminização das migrações refere-se, acima de tudo, a uma metodologia de estudo e abordagem que reconhece o rosto e a história dos migrantes para além dos números e das cifras quantitativas. 

A feminização das migrações é uma categoria de análise que apesenta as principais características migratórias e a participação das mulheres nos diversos processos de deslocamentos, o protagonismo feminino na migração e as vulnerabilidades a que as mulheres são submetidas nos processos migratórios. 

Do ponto de vista qualitativo, a feminização da migração indica que a mulher passou a ganhar maior evidência nas dinâmicas migratórias. Isso não significa que antes elas não migravam e sim que passaram a ser contabilizadas e mensuradas pelos indicadores das migrações enquanto dinâmica específica. Entretanto, o conceito ‘feminização’ também tem sido utilizado para indicar a desigualdade de direitos sociais entre homens e mulheres nas migrações pautadas nas relações de poder e dominação de gênero. 

A feminização está relacionada, ainda, com a situação da mulher numa condição subjugada nas relações de dominação de gênero reproduzidas também nas composições migratórias. Ao mesmo tempo, a feminização das migrações permite identificar o protagonismo e as resistências das mulheres nas redes de migrantes, na auto-organização, nas alternativas de trabalho e produção de renda para o sustento das famílias. Sozinhas, muitas vezes abandonadas por seus companheiros (parceiros, maridos, convivas), elas não se acomodam e não ficam esperando a solução por parte dos homens. Muito pelo contrário. 

Quantitativamente, as cifras migratórias não apresentam diferenças substanciais das migrações entre homens e mulheres. Entretanto, mulheres e crianças representam mais da metade dos migrantes em nível mundial. Entre refugiados elas são maioria em contextos específicos, muitas vezes marcados por guerras, epidemias, fome, catástrofes ambientais ou crises econômicas e políticas.

Nesses contextos marcados por diversas e perversas formas de expulsões, quase sempre é a mulher, na condição de mãe, filha, irmã ou esposa, que encabeça o deslocamento mediante emergências que colocam em risco suas vidas e de suas famílias. Diferente da maioria dos homens, em geral, as mulheres não migram sozinhas. Levam consigo os filhos pequenos, parentes e amigos, o que pode tensionar os percursos migratórios e dificultar sua inserção no mercado de trabalho e a garantia de direitos nos destinos migratórios. 

Ao combinar a sua identidade enquanto mulher com a sua condição de migrante, as mulheres são vítimas de mais violações de direitos no processo de migração? Em caso positivo, pode exemplificar, por favor?

Uma característica marcante na atual conjuntura migratória internacional é a feminização das migrações que coloca muitas mulheres vulneráveis ao tráfico humano, considerado uma das piores formas de violência contra as mulheres e uma das mais perversas violações aos direitos humanos. Neste sentido, é importante referir-se às mulheres migrantes numa abordagem pautada na perspectiva de gênero associada ao conceito de feminização, que compreende tanto o aumento quantitativo das mulheres migrantes, como a mudança dos critérios de análise das dinâmicas migratórias, com enfoque na violência de gênero. A violência contra as mulheres não termina necessariamente com as migrações. Infelizmente, em muitas situações, se reproduz e até mesmo se intensifica nas dinâmicas migratórias. 

As mudanças estruturais nas trajetórias migratórias, o fechamento dos países ricos e as restrições das políticas migratórias internacionais têm provocado mudanças importantes nas novas rotas migratórias que se voltam para os países transfronteiriços. Este dado também tem possibilitado a migração de mulheres que necessariamente têm que migrar com seus filhos e com poucos recursos. Nesse sentido, a migração para países próximos tende a mobilizar mais as mulheres. Por isso, uma característica importante das novas dinâmicas migratórias na Amazônia tem sido o deslocamento e a circulação das mulheres. 

Com o fechamento das fronteiras, desde o início da pandemia em março de 2020, tem crescido o mercado do contrabando de migrantes. A atuação de grupos criminosos especializados no transporte dos migrantes por caminhos clandestinos tem sido recorrente. As famosas ‘trochas’ que são as trilhas abertas na floresta ou na savana para a passagem irregular dos migrantes resulta em enormes prejuízos. Além dos custos com o traslado, os migrantes são usurpados com pagamentos de acréscimos para garantia da segurança e, no caso das mulheres, as narrativas de violência e exploração sexual vinculada ao pagamento extra de exigências dos contrabandistas ‘coiotes’ são recorrentes.     

Além do contrabando, nas trajetórias migratórias, o risco de tráfico humano tem sido eminente. As mulheres são as principais vítimas, não porque sejam vulneráveis, mas, principalmente porque representam maior lucro aos traficantes. Em linhas gerais, os homens são recrutados nas rotas do tráfico para o trabalho análogo ao escravo. As mulheres também são recrutadas para trabalhar nestas condições em fazendas, garimpos, no serviço doméstico, na área dos cuidados, dentre outras. Entretanto, o mercado mais lucrativo do tráfico humano tem sido, de longe, a exploração sexual comercial das mulheres. O lucro com este crime de ordem internacional representa a terceira economia ilícita do mundo. Isso justifica a modernização das redes do tráfico e exige prevenção e maior atuação por parte das autoridades vinculadas à questão migratória, especialmente a Polícia Federal e a Política Rodoviária Federal na proteção das mulheres cobiçadas pelas redes criminosas. 

De um modo geral, especialmente aqui na América Latina, os dados oficiais sobre migração consideram a questão de gênero? E qual a importância, em termos de políticas públicas, do reconhecimento da participação das mulheres nas dinâmicas migratórias?

De modo geral as instituições, especialmente as agências internacionais que atuam com as migrações não consideram as especificidades das categorias migratórias. Entretanto, o surgimento de instituições especializadas no atendimento a determinadas categorias, tem contribuído para análises que necessariamente precisam considerar os migrantes para além dos números.

A atuação de instituições como, por exemplo, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que direciona recursos com modalidades de acolhimento específicas para crianças tem feito com que as cifras migratórias sejam traduzidas em dados qualitativos. Da mesma forma, os programas vinculados à Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, também conhecida como ONU Mulheres, com projetos voltados especificamente para as mulheres, exigem a identificação e o reconhecimento das mulheres migrantes para orientar os recursos internacionais para estas finalidades. 

No entanto, as questões de gênero, na sua origem enquanto reconhecimento da igualdade nas relações de gênero não são aprofundadas na maioria dos projetos. Geralmente se executam projetos de empreendedorismo social das mulheres, por exemplo, mas, não se consideram as relações de dominação e violência de gênero nos processos de atendimento específico às mulheres. Ignoram-se as relações de dominação e a sua reprodução, inclusive por parte até mesmo das agências e instituições orientadas pelos princípios patriarcais que naturalizam a subjugação das mulheres e não as reconhece como protagonistas de sua própria história. Muitas instituições atuam com protecionismo e tutelam as mulheres nos projetos de ‘empoderamento’ e ‘empreendedorismo’ econômico e ignoram por completo os processos de libertação das mulheres migrantes.   

E no que diz respeito ao conjunto da sociedade, como cada uma e cada um de nós pode contribuir com a visibilização das necessidades e direitos das mulheres migrantes?

Reconhecer os migrantes como sujeitos de direitos é o primeiro passo. Na sequência é preciso reconhecer as especificidades das mulheres em situação de migração e romper com a ideia da predominância, nas teorias migratórias, que o migrante típico é o homem trabalhador, como se a mulher não o fosse. A pouca atenção à migração das mulheres está estreitamente vinculada ao modelo de família patriarcal, no qual o homem figura como o chefe de família e responsável pelo sustento do lar, consequentemente, autor e sujeito dos projetos migratórios. 

A feminização das migrações, no entanto, problematiza estes marcos históricos nos contextos de mobilidade humana e exigem abordagens específicas baseadas nos estudos da perspectiva de gênero. São novas abordagens em novos contextos e conjunturas migratórias que exigem novos olhares e rupturas com o patriarcado e com toda sua herança misógina, machista, autoritária sustentada nas relações de dominação e violência contra as mulheres. 

A feminização da migração tem sido pautada pela sororidade que é o sentimento de irmandade e empatia entre as mulheres unidas para enfrentar juntas os desafios impostos pelas migrações. Para muito além da sobrevivência, a sororidade enseja a irmandade e a união entre as mulheres migrantes que se juntam e se tornam fortes para enfrentar todas as formas de violência, inclusive aquela que divide as mulheres, jogando umas contra as outras em um sentimento e atitude de rivalidade e competição entre si. 

A sororidade nos processos migratórios tornam as mulheres fortes o bastante para se ajudarem com as crianças, com as iniciativas de sobrevivência nascidas de pequenos gestos de solidariedade que se tornam permanentes, geram empatia e rompem com o estigma da rivalidade entre as mulheres. 

Na perspectiva das feminização, as migrações, por mais difíceis que sejam, tem representado espaços importantes de libertação das mulheres. As dificuldades enfrentadas nas migrações têm feito com que muitas mulheres se insiram num processo permanente e irreversível de empoderamento feminino que as tornam capazes de enfrentar e combater todas as formas de opressão. 

Nos caminhos e descaminhos das migrações, o que se observa é que as mulheres se tornam mais fortes, mais questionadoras, críticas e conhecedoras de seus direitos e do seu lugar na sociedade. Desta forma, elas se redescobrem como mulheres e passam a desconstruir padrões e preconceitos impostos a elas e naturalizados nas relações de dominação. A fim, a luta pelo reconhecimento do migrante como sujeito de direitos para pela luta por igualdade de direitos e pela ruptura de todas as formas de opressão e de violência  contra as mulheres.   

 

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Em dezembro de 2020 o Jubileu Sul Américas lançou o estudo “Migrações: realidades, lutas e resistências”. A publicação foi elaborada por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores/as, o estudo traça um panorama dos processos de migração na região latinoamericana e caribenha e aborda os marcos jurídicos relativos à proteção dos direitos humanos de pessoas migrantes.  A publicação também detalha as políticas migratórias e ressalta experiências de pessoas migrantes em cinco países específicos: Argentina, Brasil, Haiti, Honduras e México.

Migrantes venezuelanos vindos de Boa Vista (RR), para São Sebastião (DF). As famílias foram recebidas pela Cáritas Brasileira em 2019. Foto Valter Campanato/Agência Brasil.

 

Márcia Maria de Oliveira é socióloga, doutora em Sociedade e Cultura, pós-doutora em Sociedade e Fronteiras e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima.

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