Falta oxigênio no pulmão do planeta
As cenas da pandemia Covid-19, em Manaus e em outras cidades da região norte, lembram os filmes de terror de Alfred Hitchcock ou os livros de suspense de Agatha Christie. O sistema de saúde colapsou: faltam leitos, falta espaço, falta pessoal e falta oxigênio! Os vivos, familiares, médicos ou enfermeiras, tropeçam com os cadáveres pelos corredores dos hospitais. Os corpos são guardados em contêineres, na fila por sepultamento. As agências funerárias e os cemitérios não dão conta desse fluxo sem precedentes de falecimentos. A disputa pelos galões de oxigênio é questão de vida ou morte. Quando aparece um novo carregamento de galões abastecidos, os parentes das vítimas correm com eles às costas, numa desesperada tentativa, quase sempre vã, de chegar antes da “foice” mortal e implacável. Trava-se outra disputa à porta do hospital, desta vez pelo direito ao atendimento. Boa parte dos contaminados sequer chega a se deslocar para o centro de saúde, vindo a falecer no interior da própria casa. Por outro lado, dezenas de pacientes são transferidos para unidades de saúde de outras capitais. Ironicamente, a Venezuela, um dos países mais criticados e vilipendiados pela seita fanática do Messias, se oferece para socorrer- nos com o envio de um carregamento de oxigênio.
Clama aos céus o grito silencioso, e por isso mesmo mais estridente, de quem luta por respiro e vida! Seria irônico se não fosse trágico: no pico desse flagelo geral que é o novo coronavírus, falta oxigênio no coração da Amazônia, o pulmão do planeta. Desnecessário repetir o desfile de erros perversos cometidos pelas autoridades municipais, estaduais e nacionais, entre os quais ganham destaque o deboche e o desdém, a indiferença e o menosprezo ao poder letal da doença. Desnecessário também lembrar, uma vez mais, que o general Eduardo Pazuello, titular do Ministério da Saúde – cargo que ocupa devido à sua especialidade em logística – em viagem a Manaus simplesmente não levou em conta o fato de que urgia repor os estoques de oxigênio.
Desnecessário, ainda, seguir alertando para outro vírus, o do cinismo quanto às recomendações científicas e quanto à medicação imprópria da cloroquina. O comportamento ostensivo exibido por ninguém menos que o presidente Bolsonaro estimula as pessoas a descumprirem as medidas sanitárias de isolamento social, uso de máscara, etc.
O resultado negativo e nefasto é que Manaus (sem contar as outras cidades do Amazonas e de outros estados da região norte) se converteu numa caricatura macabra do que ocorre no restante do país. Certo, a vacina já pousou em terras de Santa Cruz, e essa é uma boa notícia. A notícia nada confortadora é que, no que diz respeito aos diversos imunizantes por todo mundo, o Brasil colhe os frutos de uma diplomacia gratuitamente agressiva e desastrosa. Por uma parte, a única vacina em território brasileiro é CoronaVac, produzida conjuntamente pelos institutos Sinovac, da China, e Butantan, de São Paulo. Mas os insumos para a continuidade da mesma devem ser importados da China. Além disso, a vacina da universidade Oxford, a AstraZeneca, na qual o governo apostou todas as fichas, é produzida no laboratório da Índia.
Por outra parte, enquanto o governo da China vem sendo sistematicamente maltratado por uma diplomacia amadora, ideologizada e irresponsável, o governo da Índia, por sua vez, não contou com o apoio do Brasil justamente sobre uma questão de quebra de patente nessa área da saúde pública. O clã Bolsonaro e o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) parecem se divertir em achincalhar os dois países de maior população mundial. Resulta disso um efeito triplo: do ponto de vista da saúde, agora os brasileiros sofrem atraso na chegada de vacinas e insumos, talvez como consequência de uma relação bilateral marcada por atritos inconsequentes; ainda do ponto de vista sanitário, ambos os países em questão – China e Índia – têm sobre os ombros a imensa tarefa de imunizar suas populações antes de olhar para fora de casa; do ponto de vista da retomada econômica, a administração brasileira compromete desnecessariamente o intercâmbio comercial com dois parceiros de peso incontestável. Haja paciência e esperança!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 2021.