A Encíclica Fratelli Tutti e as migrações
No dia 4 de outubro o Papa Francisco assinou a sua terceira encíclica (carta papal) intitulada Fratelli Tutti que em português significa ‘todos e todas irmãos e irmãs’ (http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html). A expressão Fratelli Tuttiera uma saudação do jovem revolucionário Francisco de Assis que sonhava com um mundo mais fraterno e provocou importante mudanças na Igreja católica no início do século XIII.
Ao comentar o lançamento da encíclica, a presidência da Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB, afirma que se trata de “um convite ao diálogo generoso a ser acolhido por todas as pessoas. Eis a possibilidade para encontrar novos itinerários […] de um mundo moderno com liberdade, justiça, democracia e unidade. O Santo Padre também adverte a respeito do atual sistema econômico: não gera vida. Ao contrário disso, aprofunda desigualdades sociais” (https://www.cnbb.org.br/presidencia-da-cnbb-manifesta-se-sobre-a-fratelli-tutti-enciclica-lancada-no-dia-4-de-outubro-pelo-santo-padre/).
Fratelli Tutti lida com temas tensos na atual conjuntura social, política e econômica. Um destes temas é a questão da migração que atualmente coloca em deslocamento, interno e internacional, mais de um terço da humanidade. As migrações ocupam uma parte importante do texto ‘todos e todas irmãos e irmãs’ e representam um convite à reflexão, primeiramente das mazelas e injustiças sociais que provocam as migrações: o egoísmo, as guerras e as desigualdades do sistema econômico baseado na exclusão.
Muita gente tem ficado fora do processo de desenvolvimento capitalista. O informativo ‘exclusão social e mobilidade no Brasil’, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, analisa “os processos específicos de exclusão social e as barreiras à mobilidade que têm impacto direto sobre certos grupos sociais que tentam sair da pobreza, mas, são mais vulneráveis aos processos de exclusão social em função de seu local de residência, raça, gênero e idade” (https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=5499&Itemid=1)
Sem terra, sem teto e sem trabalho, muita gente é forçada à migração. Muitas mulheres e crianças deixam seus lugares de origem e se colocam na estrada “em busca de melhoras”. Ninguém migra para piorar. A migração é o decreto da esperança. Sempre se acredita que em algum lugar “haverá uma vida melhor”. É isso que move os migrantes. Que os faz arriscar a vida atravessando continentes à pé e rios profundos à nado. Todos os dias milhares de pessoas, a maioria mulheres e crianças, são forçadas à migração porque não lhes restam alternativas nos seus lugares de origem. O moderno mundo capitalista lhes garante o ‘direito de migrar’. Mas, não lhes permite o direito de não migrar.
Em seu número 37, a encíclica Fratelli Tutti aponta as contradições dos sistema produtor das migrações e afirma que “tanto na propaganda de regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize”.
No número 38, alerta que “traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis. As pessoas que emigram experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso”. Na maioria dos casos, os migrantes são marcados pelo sofrimento e pelas privações nos itinerários migratórios.
O número 39 critica a ausência de políticas migratórias que confinam os migrantes em abrigos sem permitir-lhes o recomeço de suas vidas com dignidade e como sujeitos de direitos. Ao mesmo tempo, critica também o uso político dos migrantes para fins econômicos inescrupulosos de governos que desviam recursos destinados ao atendimento emergencial dos migrantes para outras finalidades. E além disso “difundem uma mentalidade xenófoba”, referindo-se à institucionalização da xenofobia propagada no discurso mentiroso de políticos que omitem o crescimento econômico, social e cultural vinculado às migrações.
No número 40 todos irmãs/todas irmãs alerta que “as migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo. Hoje, porém, são afetadas por uma perda daquele sentido de responsabilidade fraterna, sobre o qual assenta toda a sociedade civil”. Isso significa que as migrações seguirão constantes neste modelo de sociedade cada vez mais excludente e temos que nos preparar, como sociedade, para lidar constantemente com as migrações de forma mais humana e fraterna.
Por fim, o Papa Francisco nos faz um convite frente ao medo do novo trazido pelos migrantes em todas as sociedades: “convido a ultrapassar estas reações primárias, porque o problema surge quando estas dúvidas e este medo, condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até, sem disso nos apercebermos, racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro”.
Desta forma enfatiza os valores morais, éticos e religiosos que circulam com os migrantes em todas as sociedades e em todos os tempos. Não acercar-se dos migrantes é perder uma grande oportunidade de ampliar nossa capacidade de acolher e conviver com o/a diferente numa perspectiva de constante aprendizado e evolução humana e cristã.
*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva – Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.