FAIXA DE GAZA: ALTO FALANTE DA VIOLÊNCIA MUNDIAL
O mundo ficou mais violento e ameaçador. A chamada “luta de classes”, que alimentou os debates e embates dos séculos 19 e 20, como que se transfigurou numa constelação generalizada de tensões e conflitos étnicos, religiosos, identitários, nacionalistas, ideológicos… Na contração da globalização, proliferam as lutas locais. Polarizações extremadas se formam e se enfrentam até mesmo no âmbito da amizade interpessoal, no interior das famílias, das comunidades, para não falar de partidos, corporações e lutas pela tomada ou manutenção do poder. No vórtice voraz dessa crescente conflagração, que mais parece um redemoinho com ventos furiosos em todas as direções, veem ganhando terreno as frentes e facções liberais ou neoliberais de extrema direita. Os exemplos, em maior ou menor grau de extremismo, se multiplicam: Hungria, Áustria, Portugal, Turquia, Alemanha, Reino Unido, Austrália, Argentina, Estados Unidos, Brasil, e a lista poderia continuar.
Os enfrentamentos se revestem de roupagens diversas. De um lado, vê-se a criação e difusão indiscriminada, em particular pelas redes digitais, do ódio, da mentira, do ataque e da difamação. Notícias, fatos, boatos e imagens se mesclam e se confundem. Os números, informações e algoritmos da Inteligência Artificial (IA) veem sendo utilizados de forma distorcida e devastadora. Essa “praça pública” da Internet tornou-se uma floresta cerrada, onde se multiplicam como cogumelos os influenciares, com seus enfoques mais diversos. Inventam, acusam, imitam, denunciam, gritam, apontam o dedo em riste, criam falsas montagens de som e imagem – e, perversamente, jogam tudo isso no gigantesco ventilador das redes digitais, esse campo fluído, nebuloso e escorregadio de potencialidades da revolução informática. Daí ao negacionismo, ao fanatismo e ao fundamentalismo (entre outros “ismos”), a linha é sempre tênue e frágil. De outro lado, assiste-se à guerra comercial e econômica dos tarifaços, outra forma de combater o inimigo.
As narrativas se cruzam e recruzam num duelo onde não há vencedores e vencidos. Apenas o jogo gratuito, e ao mesmo tempo funesto, de exibir a própria performance. Exibicionismo! Desnecessário apresentar provas, documentos, testemunhas. Importa, isso sim, falar grosso e, se possível, baixar o nível dos enfrentamentos, aparentar valentia. Mas, cuidado, embora o campo das redes digitais e da Internet esteja marcado por uma contaminação tóxica, por muito veneno e ervas daninhas, nada invalida o uso correto e responsável de todo e qualquer instrumento dos avanços tecnológicos. Vale aqui o exemplo da faca: utensílio antigo, importante e indispensável na cozinha, por exemplo, mas serve também para perpetrar não poucos feminicídios.
Semelhante contexto mundial e globalizado de combate, em suas formas mais deletérias, encontra na Faixa de Gaza um poderoso alto falante. Reflete e amplia a violência. Em décadas passadas, era possível e comum debater temas de ordem socioeconômica e político-cultural, mesmo entre pessoas de distintos povos, etnias, crenças e nações. Hoje praticamente toda discussão passa pelo pertencimento identitário. O que torna as brigas e conflitos, inevitavelmente, mais extremas, vitais, viscerais, figadais. Impossível elevar os debates sociais ou acadêmicos a um nível respeitoso e tolerável. Emerge logo a divisão nefasta entre os “nossos” e os “outros”, entre os “de dentro” e os “de fora”, os “bons” e os “maus”. O diálogo sadio acaba sendo substituído pelo grito, o palavrão, o soco, a mensagem digitalmente pesada e grosseira, o cancelamento…
Não raro, etnia, religião e política formam um caldeirão explosivo. Em lugar de servirem como referenciais distintos e reciprocamente iluminadores, convertem-se numa mistura diabólica e devastadora, numa arma de “guerra santa” contra o outro, o diferente e estrangeiro. Este jamais será somente um opositor ou adversário, e sim um inimigo a ser suprimido de forma implacável. Nas horas de caos e transição existencial, o estranho constitui o “bode expiatório” por excelência. O imigrante e refugiado é o primeiro a ser aniquilado. De fato, quando, em pleno campo de batalha, combatem frente a frente a nação, a identidade ou o “Deus verdadeiro”, lida-se com valores absolutos e absolutamente contrastantes e contraditórios.
O bem e o mal não podem coexistir e tampouco conviver lado a lado. Um ou outro tem que ser liquidado de forma definitiva. Desqualificado como pessoa humana e, em seguida, impiedosamente abatido. Isso explica por que o binômio israelenses/palestinos vem destilando, atualmente, um conflito tão brutal e violento, que ultrapassa todos os limites imaginários. Mutatis mutandis, repete-se o esquema da “solução final” perpetrado por Hitler na Segunda Guerra Mundial. O outro deixa de pertencer à família humana: é selvagem, terrorista, animalesco, vítima a ser sacrificada para a sobrevivência do “eu” – pessoa, etnia povo ou nação.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 11/08/2025

