TRANSIÇÃO DA DEMOCRACIA À TIRANIA

Nota Introdutória: Na grandiosa obra do historiador Eric Voegelin (5 volumes), encontra-se uma página em que o autor trata da Transição da democracia à tirania, baseando-se na República do filósofo grego Platão, que viveu há cerca de 2.500 anos. Ajuda a entender os fenômenos distópicos de Trump e Bolsonaro. Pe. Alfredo J. Gonçalves, Assessor do SPM.

 

“As paixões da alma, no entanto, não vagueiam tão livremente nem mesmo no último estágio de confusão moral. A ordem da alma pela predominância das forças mais elevadas se foi, mas uma nova ordem do mal assumiu o seu lugar. A análise da transição da alma democrática para a despótica pode muito bem ser considerada a obra-prima da psicologia platônica. No estado democrático da alma, todos os apetites estão em pé de igualdade e competem entre si pela satisfação. O Estado pode mesmo ter certas vantagens não percebidas no Estado oligárquico, no sentido de que a alma pelo menos não está deformada pela exclusividade do desejo aquisitivo, mas cede livremente a prazeres e luxos com um grau de sofisticação. Porém, esse estado de uma deterioração amena – e, talvez, estética – esgota-se e, agora, abre-se o último abismo da depravação. Pois para além da exuberância comum dos desejos estão as luxúrias maiores, que “se agitam numa alma em seus sonhos”, mas geralmente são mantidas refreadas na vida desperta pelos controles da sabedoria e da lei. Em sonhos, a besta lança-se em seu desvario de assassinato, incesto e perversões.

O homem sábio conhece essa possibilidade e a sua fonte. Ele não irá dormir antes de ter despertado o logistikon em sua alma e o alimentado com nobres pensamentos em meditação recolhida. Ele cuidará para que, durante o dia, seus desejos não tenham ficado nem famintos, nem supersaciados, de forma que nem seus deleites nem seus pesares lhe perturbem a contemplação; ele agora acalmará sua paixão a fim de não adormecer com sua ira voltada contra ninguém. Assim, tendo aquietado as duas forças inferiores de sua alma e tendo despertado e força mais elevada, o seu sono não será perturbado por sonhos ruins (571D-572A).

O procedimento do homem despótico é o oposto daquele adotado pelo homem sábio. Longe de tentar produzir uma catarse da alma, ele, ao contrário, irá além da confusão de desejos conflitantes e dará à multidão de apetites rivais um mestre, deixando a volúpia de seus sonhos em sua vida desperta.

O termo de Platão para essa volúpia mais profunda, que lança um brilho maléfico sobre a vida de paixões, é Eros. Esse Eros ele vê sob a imagem de um Grande Zangão Alado, cercado pelo enxame zumbidor de prazeres de uma vida dissoluta, até que o ferrão do desejo tenha crescido no Zangão a ponto de se tornar um anseio que não pode ser satisfeito. Então, por fim, depois que a paixão-mestre adquire a sua plena mania, ela se rompe em desvario; ela purga a alma de seus últimos resquícios de vergonha e temperança e subordina todas as ações à satisfação de seu anseio insaciável ((572D-573B). O Eros tyranos (573B) é o duplo satânico do Eros socrático. O enthousiasmos do Eros socrático é a força positiva que carrega a alma para além de si mesma em direção ao Agathon. O Eros tyranos é alado como o deus Eros, mas parasita (o Zangão); ele não tem um enthousiasmos produtivo, mas um ferrão (kentron) que consome insaciavelmente a substância. Ainda assim, ambos os Eros são modos de mania. O desejo que volta a alma para o Bem e o desejo que sucumbe ao fascínio do Mal estão estreitamente relacionados; a mania da alma pode ser tanto o seu daimon bom como o seu daimon mau. Mesmo na República, em que o Agathon ocupa o centro, o problema do dualismo cósmico não pode ser totalmente suprimido.

Podemos ir ainda mais longe e dizer que no dualismo do Eros o dualismo de Bem e Mal é reduzido a sua base de experiência. Pois o bom e o mau Eros estão muito próximos na alma como a sua potencialidade de vencer-se pela transcendência ou perder-se pelo fechamento e pela confiança em seus próprios recursos. O dualismo dos Eros, estreitamente relacionado ao dualismo cristão do amor Dei e amor sui, recebe a sua cor específica da experiência de transição de um modo para outro. Mesmo o Eros tirânico com sua mania é um princípio ordenador; e, embora a substância tenha mudado, o estilo de ordem é mantido. A decomposição da alma bem ordenada não leva à desordem ou à confusão, mas à ordem pervertida. Parece que Platão tinha uma forte consciência da espiritualidade do mal e do fascínio que emana de uma ordem tirânica. O Eros tyranos é perigoso e mau, mas não é desprezível – assim como a ordem de Atlântida, no Crítias tem suas qualidades de esplender luciferino. Nessa concepção de tirania, conforme relacionada à fundação da pólis perfeita através de uma metamorfose do Eros, tocamos, talvez, o perigo mais íntimo da alma platônica, o perigo de desviar-se do caminho difícil do espírito e cair no abismo do orgulho”.

VOEGELIN, Eric; Ordem e história, Platão e Aristóteles, volume III, Edições Loyola, São Paulo – SP, Brasil, 2009, 3ª edição: 2015.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.