40 ANOS E 40 DIAS DIAS NO DESERTO
Nesta semana os Pe Alfredo Gonçalves e Pe Valdecir Molinari, do Serviço Pastoral dos Migrantes-SPM, estiveram em Araçuai-MG no Vale do Jequitionha, acompanhando o tema das migrações internas. Nesta ocasião o D. Geraldo Bispo de Araçuai manifestou preocupações com as área de preservação ambiental, com todas pessoas e comunidades Quilombolas, indígenas, que não sejam forçadas a migrar por conta das mineradoras e da especulação deste mercado em expansão Nesta região. Os membros da diretoria do Pastoral dos Migrantes-SPM, manifestaram o desejo de fortalecer as missões realizadas na região e alimentar de forma efetiva e afetiva uma equipe da Pastoral dos Migrantes-SPM. Neste caminho o Pe Alfredo Gonçalves nos enviou essa reflexão para esse momento de Quaresma.
40 ANOS E 40 DIAS DIAS NO DESERTO
Em termos simbólicos, a metáfora do deserto tem grande peso, seja de um ponto de vista bíblico, seja quanto à seu significado espiritual e teológica. A travessia do deserto, logo após a libertação do país da escravidão, Egito, durou 40 anos. Por 40 dias, o profeta Elias caminhou pelo deserto até o encontro com o Senhor no monte Horeb. Outros 40 dias passou Jesus no deserto, no duro combate às tentações do demônio, com suas artimanhas e armadilhas. João Batista, o precursor, também já o havia precedido pelas areias do deserto. A família de Nazaré, ainda, em fuga da perseguição de Herodes, experimentou as agruras do deserto.
Deserto é lugar de silêncio, mas é também lugar de escuta. Noutras palavras, um silêncio de dupla roupagem: silêncio passivo, no sentido de calar tudo que ruge em nós; e silêncio ativo, na perspectiva de ouvir os sinais de Deus que irrompem na história humana. Calar os interesses e instintos imediatos, para ouvir os elementos de longo prazo, meditados com sabedoria; calar o ego, o egoísmo e o orgulho, para ouvir a aflição nos olhos e rostos, almas e corações dos irmãos; calar os ventos fortes, trovões e ruídos das tempestades cotidianas, para ouvir a brisa suave, tal qual a mão divina que aquece e acaricia o empenho humano. Em síntese, calar as aparências enganosas que fascinam, seduzem e movem nossas energias, para ouvir a voz do coração e da consciência que alertam para a necessidade de mudanças, onde a graça de Deus e o sopro do Espírito veem suprir a fraqueza e a fragilidade de toda condição humana.
Daí a necessidade de se retirar ao deserto. Onde nada há para ver, a não ser areia e pedra, o olhar se recolhe sobre si mesmo; onde nada há para ouvir, a não ser rajadas de ventos funestos e o rastejar repentino de animais selvagens, a atenção permanece concentrada na escuta daquilo que nasce e cresce nas próprias entranhas; onde ninguém nos impõe ou busca uma presença, notamos que, em certas circunstâncias da vida, estamos sós conosco mesmo. Melhor, eu estou só comigo mesmo, sou minha única companhia. Não há como escamoteá-la nem como fugir dela. Então, o deserto se converte em espelho. Não espelho do egocentrismo, da vaidade ou narcisismo, mas espelho capaz de autocorreção.
Chegamos ao ponto núclear: deserto é espelho, deserto é memória, deserto é a capacidade de se deter, com coragem e abertura, sobre a própria trajetória histórica. Ou seja, deserto é encruzilhada da existência. Ora, toda encruzilhada pressupõe duas coisas: diversas alternativas e uma escolha. Abrem-se desafios novos, os quais, por sua vez, requerem opções não imediatas, mas refletidas. Isso explica a ambiguidade da encruzilhada: esta tanto pode nos fazer avançar para as fronteiras, quanto podem nos assustar e inibir, o que não raro nos fazer recuar para o berço, o colo, o conforto, o comodismo, o aconchego do lar, a “sacristia ou o ritualismo formal”, diríamos, no caso da caminhada eclesial.
É nesse marco conceitual que se colocam os 40 anos do SPM. Aqui, espelho e memória devem estar a serviço do contexto social e histórico, no sentido de saber adaptar a ação sociopastoral aos desafios contemporâneos da migração. Qualquer leitura das migrações hoje, ainda que superficial, chegará à conclusão que elas representam as ondas visíveis de correntes subterrâneas invísiveis. Movimentos aparentes de uma ordem oculta, mas sistêmica e sistemática. Numa palavra, o vaivém contínuo da migração, verificado a olho nu, tem suas raízes ocultas na assimetria e desigualdade social crescentes, na violência das guerras abertas ou dissimuladas e nas catastróficas mudanças climáticas que sacrificam em primeiro lugar os que já se encontram vulneráveis, entre outras razões de menor relevo.
Aqui tropeçamos, no bom sentido, com o tema da Campanha da Fraternidade de 2025, Fraternidade e ecologia integral. O projeto que nasce e avança progressivamente através da Revolução Industrial do século XIX, de filosofia liberal, é basicamente um projeto de exploração. Exploração dos bens que a natureza coloca à nossa disposição, por um lado, e exploração da força de trabalho humana, por outro. Decorre daí, respectivamente, as graves agressões planetárias aos ecossistemas da Terra, e o gigantesco exército de mão de obra que “não mora, apenas acampa”, sempre obrigado a migrar atrás dos ventos do capital e das migalhas que caem da mesa dos ricos. O ritmo frenético da exploração dos recursos do solo e subsolo corresponde, face a face, aos deslocamentos cada vez mais desordenados da migração.
O grande desafio para os 40 anos do SPM – entre tantos outros parceiros e lutadores populares – é transformar esse projeto de exploração em um projeto de cuidado e cultivo da vida em todas as suas formas (biodiversidade): projeto de harmonia, de coexistência e convivência com “nossa casa comum” (Laudato Si’, de 2015), onde todos e todas poderemos viver como irmãos e irmãs (Fratelli Tutti, de 2020). A ambição egoísta do “viver bem” substituída pela comunhão fraterna e solidariedade do “bem viver”.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – Araçuaí-MG, 18/03/2025. Baseado na inspiração de Roberto Saraiva