Dez mandamentos da Pastoral dos Migrantes

Introdução

O presente texto toma como metáfora o episódio sobre os dez mandamentos do Antigo Testamento. A metáfora funciona como um meio para transformar a temática mais pedagógica e de melhor assimilação. Os parágrafos que seguem, portanto, pretendem reproduzir dez passos básicos do que hoje se convencionou chamar de Pastoral dos Migrantes. Qual viga mestra de um edifício em construção, uma pergunta permeia transversalmente cada um deles: o que não pode faltar na solicitude evangélica para com os migrantes e refugiados? Tentamos especificar e detalhar as respostas mediante um conteúdo minimamente indispensável, elaborado através de uma dezena de pontos, cada qual acompanhado com algumas orientações fundamentais. Estas, porém, como será de fácil constatação, estão longe de esgotar o assunto.

A título de introdução, vale ainda lembrar que todo texto pressupõe um contexto e um pré-texto. O contexto, como não poderia deixar de ser, vem da realidade diversificada, múltipla e complexa dos migrantes em todo planeta. O número dos que se deslocam nas últimas décadas ou últimos anos vem crescendo de forma progressiva. De acordo com o relatório do PNUND (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que foi publicado em setembro de 2019, a quantidade de pessoas que habita fora do país em que nasceu chega a cerca de 271,6 milhões. Dessas, cerca de 80 milhões são reconhecidas como refugiados. Ainda segundo o mesmo relatório, os deslocamentos internos em todo mundo envolvem ao redor de 740 milhões.

Convém assinalar também os principais corredores migratórios que ligam os polos de origem e os polos de destino. A rota mediterrânea faz a ponte entre o norte da África e o sul da Europa: Líbia, de um lado, Itália e Espanha, de outro; já a rota balcânica une o Oriente Médio e o norte da África aos países do velho continente europeu: Grécia, de um lado, Bulgária, Hungria e Áustria, do outro. Ambas as rotas estão bloqueadas devido a acordos bilaterais feitos entre a União Europeia, por uma parte, e a Líbia e Turquia, por outra. Disso resulta que, milhares de migrantes encontram contemporaneamente detidos em campos de refugiados nestes dois últimos países.

O corredor mais significativo, porém, segue sendo aquela que se movimenta no interior do velho continente, de modo particular dos países de leste europeu em direção à parte ocidental: são ao redor de 42 milhões de pessoas, o que perfaz nada menos do que 15% do total de migrantes internos. Vem em seguida a rota da África do Norte para a Ásia Ocidental, com cerca de 19 milhões de pessoas. Dentro da própria África Subsaariana, movimentam-se 18,3 milhões de migrantes intra-regionais. Do lado das Américas, 12,7 milhões de migrantes internacionais vindos de vários países do continente, cruzaram em 2017 a fronteira entre México e Estados Unidos. Desde o início de 2019, quase 500 mil foram barrados tentando ultrapassar a mesma fronteira. Não podemos deixar de falar da fronteira entre Venezuela, os países vizinhos e as ilhas do Caribe, onde milhões de migrantes fogem à pobreza, à violência e à fome.

Para o olhar evangélico da pastoral, entretanto, cada número expressa um rosto, um nome e sobrenome, uma história e uma família dispersa. Inegável a importância da dimensão geográfica, sociológica, política e socioeconômica, mas aqui está em jogo sobretudo a dimensão humanitária. O Bom Pastor é aquele que é capaz de abandonar as 99 ovelhas sadias para correr atrás daquela que se perdeu, na tentativa de trazê-la de volta aos seus cuidados. Isso explica porque nos parágrafos que seguem, estaremos mais atentos às feridas, chagas e cicatrizes que a migração imprime nos corpos, nas mentes e nas almas de quem se move pelas estradas do mundo.

Além do contexto, como dissemos acima, todo escrito pressupõe igualmente um pré-texto. São as perguntas – formuladas ou não, implícitas ou explícitas, ditas ou não ditas, latentes ou declaradas – às quais o texto procura responder. Evidentemente que tais interrogações e inquietudes levantam-se do próprio contexto, como gritos que clamam ao céu e que exigem uma resposta. De forma consciente ou inconsciente, quem escreve tenta jogar alguma luz sobre a complexidade do drama vivido por determinada porção da humanidade. O mesmo se aplica à população migrante. 

A intenção é iluminar os caminhos de quem se desloca, desfazer as dúvidas que se acumulam e acender pequenas velas, por menores que estas últimas possam se revelar, na tentativa de entender a realidade com maior nitidez. Por outro lado, os dez passos ou mandamentos buscam apontar caminhos para conferir maior eficácia ao trabalho que se realiza com os migrantes e refugiados. Por isso mesmo, entre todas as questões ocultas, indefinidas, impronunciáveis e até mesmo imperceptíveis, repetimos uma vez mais aquela que vem a ser uma espécie de fio condutor do texto: o que não pode faltar na solicitude evangélica para com os migrantes e refugiados?

  • Reconhecer a presença dos migrantes

Na sociedade moderna ou pós-moderna, “os mil rostos” do outro batem diariamente à nossa porta. Amplia-se cada vez mais o leque de povos e nações que passam a fazer parte do gigantesco quadro da mobilidade humana, que alguns analistas classificam como “quarto mundo”. Nos dias atuais, praticamente todos os países estão envolvidos com o fenômeno das migrações, seja enquanto lugar de origem, enquanto lugar de destino ou enquanto zona de trânsito. Determinados países como que se especializam em fornecer emigrantes, outros em recebê-los, e outros ainda figuram como “corredores humanitários”. Tampouco faltam, no entanto, aqueles que, simultaneamente, abrigam duas ou três dessas denominações aproximativas.

Que significa tomar consciência de que pessoas diferentes circulam ao redor de nossas casas, de nossas ruas, de nossos bairros e de nossas cidades? Basta um olhar mais atento para dar-se conta que estrangeiros de outros países ou nacionais de outras regiões vivem e convivem ao nosso lado. Frente à realidade migratória, porém, muitas vezes prevalece a miopia ou a cegueira. Com inusitada frequência, as autoridades, a mídia e até mesmo a opinião pública desviam nossa atenção daqueles que, “estranhos e diferentes”, lutam para encontrar um lugar ao sol e buscar um futuro mais promissor para si e para a família. Tropeçamos com eles e não os vemos ou não os queremos ver.

A presença do “outro” sempre incomoda, causa certa insegurança, mexe com as bases sólidas do cotidiano. Fazem o chão tremer debaixo dos pés. Que fazem esses estranhos entre nós? O que querem? Por que não ficaram em seus lugares de nascimento? O que temos a ver com isso? Como uma pedra atirada na superfície lisa e calma de um lago, o migrante costuma engendrar ondas de medo, angústia, insegurança e mesmo revolta na quietude sossegada do nosso dia-a-dia. Questiona e interpela nossa própria existência. Torna-se um espelho que reflete, contemporaneamente, nossos valores e contravalores. Interpelam, ao mesmo tempo, o país de origem, o de trânsito e o de destino. Na origem, esquecidos e renegados, viram-se obrigados a sair; no trânsito, tentam pressionar e abrir brechas nas fronteiras cerradas, construir pontes onde se multiplicam os muros; no destino, imprimem marcas inéditas e alternativas imprevistas.

Em momentos de crise e caos, de desemprego ou desemprego, as coisas se agravam.  Facilmente podem desencadear a discriminação e o preconceito, quando não o ódio e a hostilidade. Emergem do fundo das entranhas sentimentos turvos e represados. Tendem a florescer o racismo, a xenofobia e a perseguição aberta. Na desordem, torna-se comum escolher o mais frágil e vulnerável como “bode expiatório”. Entre eles, evidente que o migrante figura como alvo de tais investidas. No transcorrer da pandemia da Covid-19, por exemplo, com seus efeitos trágicos, vimos como os imigrantes em geral foram os primeiros a sofrer as consequências. Aos milhares e milhões, em vários países, viram-se sem o posto de trabalho e sem qualquer meio de sobrevivência

Tomar consciência da alteridade do “outro” é, antes de mais nada, reconhecer que os estrangeiros, migrantes ou refugiados, embora diferentes em seu modo de ser e em sua visão de mundo, não devem ser considerados como desiguais. Na imensa maioria dos casos não se encontram fora do lugar em que nasceram e sepultaram seus ancestrais por vontade própria. Vieram fugidos da violência, da guerra e de conflitos de toda ordem; fugidos de uma avalanche de desastres climáticos cada vez mais extremos; fugidos da pobreza, da miséria e da fome. De uma forma ou de outra, clamam por refúgio. Uma vez que o país de origem lhes negou uma verdadeira cidadania, justa e digna, buscam novas oportunidade para recompor e recomeçar suas vidas. Toda pessoa humana, se e quando forçada a deixar sua terra natal, tem direito a uma nova oportunidade, no sentido de encontrar um solo que possa ser chamado de pátria.

A Pastoral dos Migrantes deve manter um olhar atento aos que chegam e se instalam à nossa volta. Como vencer a repugnância aberta ou latente contra quem vem “de longe e de fora”? Como estender a mão a quem se viu desenraizado, caminha com as raízes ao sol, e necessita se levantar? Um dos objetivos do trabalho pastoral consiste, justamente, em dar visibilidade aos invisíveis, vulneráveis e não raro “descartáveis”, como diz o Papa Francisco. Mais que isso! Mostrar que, além de vítimas de tantas calamidades, podem ser profetas e protagonistas de um futuro recriado. Sim, na medida em que, como veremos mais à frente, trazem na bagagem sementes e valores que tendem a enriquecer nosso modo de vida. Como lembrava Scalabrini – o chamado “pai e apóstolo dos migrantes” – os movimentos migratórios, embora com não pouco suor, sangue e lágrimas, foram historicamente responsáveis pela criação de novas formas de vida, novos países e civilizações.

Neste primeiro passo, poderá ser de grande validade o uso do “método dos 4Rs para uma leitura popular das migrações”. Mais do que dados, estatísticas, tabelas e gráficos das migrações, o método centra seu olhar nos rostos, rotas, raízes e respostas – daí a denominação de quatro “Rs”. Cada um deles abre determinado horizonte para estudar o mundo complexo e mutável das migrações.

  • Acolhida e abertura

Acolhida, abertura, ambiente de boas-vindas – eis o DNA de qualquer tipo de trabalho com os migrantes, refugiados, peregrinos, viajantes, forasteiros, itinerantes, nômades, deslocados!… Os ingredientes naturais e decisivos desse “cartão de visitas” passam, entre outras coisas, pela atenção, pela escuta, pelo esforço de simpatia. Nada disso pode ser dado por descontado. Ao contrário, constitui uma tarefa difícil e diária, a ser repetida diante de cada pessoa ou grupo. No empenho consciente para criar um clima acolhedor e hospitaleiro encontra-se a razão de ser da própria solicitude pastoral para com o outro. “A primeira impressão é aquela que fica”, diz com razão e sabedoria o ditado popular. Gestos pequenos e simples, mas que fazem com que o recém-chegado se sinta em casa: preparar o fogo da lareira humana, soprar nas brasas adormecidas do coração, acender a chama do olhar e do sorriso, revestir de luz e calor a sala do encontro.

O conceito de acolhida subdivide-se em duas dimensões: receber com as portas abertas e ir ao encontro. Uma passiva-ativa, outra ativa-passiva. No primeiro caso, receber bem aquele que acaba de chegar não significa simplesmente abrir-lhe a porta para dar-lhe passagem. É também isso, mas é preciso dar mais um passo. Além e antes disso, faz-se necessário abrir o coração, a mente e a alma diante de uma alteridade com a qual passo a interagir. Um gesto aparentemente passivo converte-se em uma tarefa extremamente ativa. A interação recíproca pode trazer grandes interrogações e grandes novidades. Daí o ouvido atento. Para o agente da Pastoral dos Migrantes, não raro, os ouvidos são mais importantes do que a boca. Escutar muito, falar pouco.

Na segunda dimensão da acolhida, começa-se por desconfiar que nem sempre a porta aberta constitui um convite para o migrante entrar, tanto numa casa quanto na Igreja. Faltam-lhe muitas vezes a roupa e o calçado adequado, o que o leva a uma atitude de inibição. Esquiva-se para não se expor, tentando salvar o que lhe restou de dignidade. Neste caso, entra em cena o apelo do Papa Francisco sobre a “Igreja em saída”. Se o fato de escancarar a porta da comunidade não atrai o migrante, o agente pastoral deve tornar-se, ele mesmo, um convite vivo lá onde os estrangeiros vivem, trabalham ou se reúnem. Sair da sacristia, criar pés e pôr-se a caminho. 

Não seria ocioso confrontar o conceito de acolhida na Pastoral dos Migrantes com a noção de hospedagem diante do homo viator. Semelhante gesto de hospedagem, quase que obrigatório, costuma ser encontrado com bastante frequência tanto nos livros do Antigo Testamento e nas obras da literatura em geral, quanto no cotidiano carente das camadas menos favorecidas da população. Parte-se do pressuposto óbvio de que todo forasteiro em viagem, se quiser seguir seu percurso, deve parar, repousar e renovar as energias. O alimento e o calor de um teto são indispensáveis para retomar o caminho. Dessa necessidade decorre o dever da hospedagem.

Quanto à hospedagem nas obras clássicas de literatura em geral nas comunidades mais pobres da população, assinalamos apenas sua relevância. No primeiro caso, basta dar-se conta de como o rei junto com sua casa e sua corte palaciana recebem, por exemplo, Ulisses, o homem dos mil ardis e astúcias; Eneias, o nobre viajante sobrevivente da guerra de Tróia, que se põe em marcha para fundar Roma; e Dom Quixote, o cavaleiro andante da triste figura, ao lado do inseparável Sancho Pança. Em meio a uma multidão de outros personagens da literatura universal, os três são acolhidos em suas aventuras com honras ricas e calorosas. Há sempre a esperá-los boa recepção e mesa farta. São considerados como verdadeiros príncipes. As casas que os hospedam desdobram-se para servi-los do melhor modo possível. A expressão homo viator remete, ainda, à Divina Comédia, de Dante Aleghieri e ao Grande sertão-veredas, de Guimarães Rosa

No segundo caso, é conhecida e notória a forma de acolhida que as casas, comunidades e vilas pobres reservam aos visitantes e peregrinos, como também aos romeiros que se dirigem em peregrinação a algum santuário. Não obstante a carência em que vivem e os limites de sua condição socioeconômica, ou justamente por causa disso, o povo pobre esmera-se em oferecer o que tem de melhor àqueles que lhe batem à porta. Além disso, na sua religiosidade viva, hospedar é o mesmo que dar abrigo e alimento aos próprios mensageiros de Deus. Toda pessoa que cruza o limiar da família representa, de forma velada ou aberta, um enviado do céu. Não pode ser deixada ao frio e à fome da rua. O serviço ao forasteiro figura mesmo como uma espécie de oração.

Detenhamo-nos mais longamente no espírito do Antigo Testamento, tomando em mãos o episódio ocorrido junto ao carvalho de Mambré (Gn 18, 1-21). Ao lado dele, numa tenda à beira da estrada, o casal em idade avançada, Abraão e Sara, cuida pacientemente do próprio cotidiano. Desnecessário recordar que as três religiões do livro – judaísmo, cristianismo e islamismo – depositam neles uma referência recíproca. Sentado do lado de fora à sombra da velha árvore, Abraão se depara com três forasteiros que acabavam de se aproximar. De imediato, supondo-os cansados da viagem, levanta-se e dispõe-se a acolhê-los, como manda o costume da boa hospedagem. Logo intui que tais viajantes, como os anjos, são enviados do Altíssimo. Passa a louvar e agradecer o Senhor pela honra dessa tão ilustre visita. De acordo com o relato bíblico, o velho anfitrião, ansioso por receber bem os caminhantes, corre em direção à tenda e pede que a mulher Sara providencie, depressa, a farinha necessária para assar alguns pães. “Em seguida, Abraão correu ao rebanho, tomou um novilho tenro e bom e deu-o a um servo, que se apressou em prepará-lo. Tomou também coalhada, leite, o novilho que tinha preparado e serviu tudo para eles. E ficou de pé junto deles, debaixo da árvore, enquanto comiam”. Atitude de servo e de respeito.

As expressões não deixam dúvida: corre, depressa, se apressou, ficou de pé. Os mensageiros de Deus, ao se apresentarem de improviso, sacodem a monotonia diária. De imediato, tudo se põe em movimento. Todo ambiente da pobre tenda ganha uma vitalidade sem precedentes. Mas os visitantes sacodem também os ossos, os músculos e o ânimo do casal idoso. Para além de um “correr” do corpo e dos pés, podemos imaginar um “correr” vital e caloroso do próprio sangue nas veias, acrescido de batimentos cardíacos descontrolados. O coração, a mente e o espírito se aquecem com uma chama vívida e inusitada. Espécie de luz, alegria ébria e contagiante, que rejuvenesce e faz a vida marchar em ritmo mais acelerado. Impossível permanecer indiferente diante do que pode significar a presença dos visitantes.

Quando Deus irrompe na história da humanidade, abre em seu tecido complexo, labiríntico e tortuoso alternativas inéditas, surpreendentes. Descortinam-se veredas novas, com perspectivas largas e horizontes inusitados. Renova-se toda existência. Um entusiasmo primaveril contagia a tenda e os anciãos. A tal ponto que o sangue juvenil irriga o ventre infértil de Sara. E então vem a grande notícia: mesmo na velhice, dentro de um ano ela haverá de dar à luz um filho! Dúvida, incredulidade e risos cruzam o diálogo entre forasteiros e anfitriões. A Palavra de Deus, porém, revela, uma vez mais e sempre, sua força poderosa e criativa. Num anúncio sem igual, refaz-se a utopia da Terra Prometida e da descendência do Povo de Israel, a qual será “tão numerosa como as estrelas do céu e as areias da praia”. 

Baila nos olhos de Abraão e de Sara um brilho novo e desconhecido. Enquanto ela se desdobra na preparação do alimento, ele se sente incapaz de sentar enquanto os mensageiros comem. A acolhida e o encontro com os forasteiros representaram uma tríplice novidade. Em primeiro lugar, o próprio Deus se torna presente em todos e em cada migrante que bate à nossa porta: “eu era peregrino e me recebeste em tua casa (Mt 25, 35). Depois, a própria existência de quem se faz anfitrião ganha um novo ardor e redobrado entusiasmo: “não ardia o nosso coração enquanto Ele nos falava das Sagradas Escrituras” (Lc 24,32). Por fim, ao anjos, os forasteiros e os migrantes são sempre portadores de boas notícias, mensagens cujo sopro ao mesmo tempo humano e divino reacende a chama da vida e lhe imprimem novo sabor: “todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Senhor fez em mim maravilhas” (Lc 1, 48-49).

  • Encontro com os migrantes

A esta altura, convém introduzir o exemplo de ninguém menos que o “profeta itinerante de Nazaré”. Escreve o evangelista que “Jesus percorria todas as cidades e povoados(…). Vendo as ‘multidões cansadas e abatidas’, Ele teve compaixão, porque estavam como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). O Mestre evangeliza pelos caminhos da Galileia, da Samaria e da Judeia, até chegar a Jerusalém. Nos tempos atuais, tão incertos quanto turbulentos, quem representa essas “multidões cansadas e abatidas”?  Cansadas de tanto caminhar pelo deserto ou pela floresta, de tanto atravessar rios e mares, de tanto fazer, desfazer e refazer a mesma estrada, de tanto cruzar e recruzar a zona fronteiriça! Ou de assistir ao naufrágio e morte de tantos companheiros de travessia, sentindo-se como verdadeiros sobreviventes em meio a uma luta sem trégua.

Abatidas pelo peso da saudade e da solidão; pela falta de oportunidade e pelo abandono das autoridades; pelo descaso e desmonte das políticas públicas que poderiam beneficiar os migrantes; por uma prática legislativa que se estende a todos os países e que restringe cada vez mais o direito de ir e vir; pelo trabalho duro e sujo, perigoso e mal remunerado que ninguém aceita empreender; pela responsabilidade para com a família que ficou para atrás, mas ainda assim é preciso carregar sobre os ombros. Forasteiros sem raiz e sem rumo, em meio a um vaivém sem fim, tentando transformar a fuga em uma nova busca que possa dar pão e sentido à existência, resgatando ao mesmo tempo a dignidade humana pisoteada por caminhos e fronteiras inóspitas.

Voltado ao testemunho de Jesus, sua caravana, não obstante a oposição dos discípulos, jamais atropelava quem se punha a gritar por socorro. Ou de quem sequer tinha forças para gritar e cujo apelo, por isso mesmo, se tornava mais vívido e estridente. O Mestre sempre se detinha diante do pobre e excluído, do doentes e necessitado, do indefeso e pecador. Os exemplos são numerosos, eloquentes e expressivos: o cego de nascença, a mulher que sofria de fluxo de sangue, a viúva que perdera o filho, os dez leprosos, os endemoniados, a mulher sírio-fenícia!… 

Através desses encontros, toques e curas, Jesus revela a face luminosa de um Deus que a aflição do seu povo no Egito, ouve o clamor por causa de seus opressores, conhece o seu sofrimento devido à escravidão e desce para libertá-los e conduzi-los a uma terra “onde corre leite e mel” (Ex 3, 7-10; Dt 26, 5-10). Os quatro verbos sublinhados, usados na primeira pessoa do singular e atribuídos a Ihaweh, revelam um Deus sempre atento à realidade social, política e econômica do povo, particularmente onde a própria vida vem sendo vilipendiada. Deus que se compadece e vai ao encontro dos que sofrem. Mostra-se sensível, solidário e misericordioso para com os pequenos e humildes, empenhando-se em resgatar e recuperar a dignidade humana brutalmente pisoteada.

Deus que não hesita em tomar o caminho do êxodo. A experiência fundante do povo de Israel encontra em Ihaweh não um Senhor todo-poderoso, e sim um Deus que se coloca ao lado dos oprimidos contra o opressor. Diferentemente dos povos e impérios vizinhos, cujas divindades ocupam tronos e palácios e dispõem de soldados e servidores, Israel faz a experiência profunda de um Deus da libertação e da travessia do deserto, da tenda e do caminho, do exílio e da diáspora. Nesse contexto, emerge o ruído estridente entre sacerdotes e profetas, tensão conflituosa e latente que atravessa vários livros do Antigo Testamento. Os primeiros são funcionários do templo e defendem o Deus estabelecido na cidade, aliado ao poder e à riqueza, bem como ao status quo. Os segundos, por sua vez, retomando a experiência fundante da libertação, levantam-se em nome do Deus do caminho, o qual, desde as periferias marginalizadas, defende os direitos dos camponeses explorados por elevados impostos e o trabalho das corveias. Deus companheiro junto “ao órfão, à viúva e o estrangeiro”, trilogia recorrente na misericórdia divina.

Daí a tríplice dimensão do movimento profético em Israel. Antes de mais nada temos o lembra-te: foste escravo no Egito e, por isso mesmo, não deves escravizar o estrangeiro que mora e convive a teu lado, nem o teu irmão. Depois, vem a denúncia que pesa sobre os governantes e autoridades, sacerdotes e juízes em geral, que “vendem o pobre por um par de sandálias” (Amós) ou “esquecem o direito e a justiça, fazendo do povo carne de panela para se banquetearem” (Miquéias). Por fim, a boa notícia do anúncio, em que se faz sentir toda força e veemência do profetismo, chamando a nação a preparar-se para o “Dia do Senhor”, simbolizado na “nova Jerusalém libertada”. Veremos que o próprio Jesus, ao dar início à sua vida pública em Nazaré, retoma exatamente a mesma energia profética ao citar o livro de Isaías (Is. 61,1) como uma espécie de programa para sua missão, episódio narrado pelo evangelista Lucas (Lc 4,16-20).

Mas o episódio mais emblemático por sua concretude segue sendo a parábola do Bom Samaritano: um verdadeiro “evangelho dentro do Evangelho” (Lc 10, 25-37). Aqui a salvação pessoal aparece subordinada à atitude tomada diante de uma situação concreta, em que a vida se encontra ameaçada. Primeiro passam por ali os dois funcionários do templo, o sacerdote e o levita – “por acaso”, sublinha o evangelista. Ambos seguem adiante, como se nada tivessem acontecido. Cegos e surdos, ignoram completamente a gravidade do caso. Para eles, o formalismo engessado dos rituais, a solenidade da liturgia e as pompas do sagrado estão em primeiro lugar. Não têm tempo para o ferido que agoniza à beira da estrada e da vida. 

Ocorre justamente o oposto com o samaritano, um estrangeiro para os judeus. Sensível e solidário, sentiu compaixão: deteve-se, aproximou-se do “caído”, cuidou-lhe as feridas e o encaminhou para a pensão mais próxima. O pouco que possuía colocou a serviço da do homem “quase morto”. Para ele, a defesa daquela vida, única e irrepetível, estava acima de qualquer outro compromisso. Sua atenção concentra-se na necessidade urgente de salvar o pobre indefeso. Ao final, a conclusão de Jesus não deixa qualquer dúvida ao dizer ao doutor da lei: “vá e faça a mesma coisa”! O faminto e sedento, o encarcerando e sem roupa, o doente e migrante se tornam critério de salvação: “eu era estrangeiro, e vocês me receberam em sua casa” (Mt 25, 35). Mas tornam-se também, de maneira correspondente, critério de condenação: “todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25, 45).

No encontro vivo com os migrantes, o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) constitui uma espécie de “evangelho” para Pastoral dos Migrantes. O final trágico do Messias executado no patíbulo da cruz traumatiza e paralisa os seus seguidores. Eles se dispersam e se trancam “por receio dos judeus”. Dois deles põem-se em fuga para o povoado de Emaús. O percurso é marcado por medo, tristeza, fracasso, abatimento e uma boa dose de impotência. Se o até mesmo o Mestre morreu daquela forma, como um condenado, o que poderá ocorrer conosco? Justamente no caminho, e a caminho, Jesus aparece para lhes revigorar as forças e o entusiasmo. Voltaremos a esse “evangelho” no último item reservado à espiritualidade do caminho.

  • Formação de equipes pastorais

O organograma da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil prevê que cada pastoral social vinculada à conferência desenvolva uma estrutura mínima para a própria atuação nas diversas instâncias da Igreja, envolvendo tanto as comunidades e paróquias quanto as dioceses. Trata-se, no fundo, de uma rede capilar, a qual, em maior ou menor grau, tenta potencialmente oferecer sua solicitude evangélica em todas as regiões do território nacional. Olhando a história singular de cada pastoral, é fácil dar-se conta que o percurso de cada uma segue vias e ritmos diferenciados. A partir da própria fundação e da sede nacional, todas tendem a um crescimento centrífugo e em espiral, no sentido de cobrir os lugares mais necessitados, periféricos e longínquos. Vale o mesmo para os organismos, como é o caso da Caritas Nacional.

Constata-se atualmente que, enquanto algumas pastorais lograram estender a própria rede a quase todas as dioceses, outras ainda estão num processo lento de ampliar o leque da própria abrangência. O SPM – Serviço Pastoral dos Migrantes, por exemplo, fundado em outubro de 1985, já se faz presente em boa parte das dioceses e regionais da CNBB. Não que o trabalho pastoral com os migrantes tenha começado nessa data tão recente. Muito pelo contrário, desde o final do século XIX, com a intuição do bispo D. João Batista Scalabrini, já atuavam no universo da mobilidade humana os padres e as irmãs de carisma scalabriniano, e décadas mais tarde também as missionárias seculares. Esses três institutos têm marcado uma presença exemplar, específica e significativa, primeiro entre os imigrantes italianos, depois entre estrangeiros e refugiados de todos os povos, nações e culturas, bem como entre as migrações internas, sejam estas últimas de caráter temporário, sazonal ou definitivo.

Poder-se-ia afirmar que o SPM é um fruto que nasce de dois troncos simultaneamente distintos e convergentes. Por uma parte, numa perspectiva remota, mergulha suas raízes profundas na missão secular e concreta do carisma scalabriniano, que hoje se faz vivo em todos continentes, com presença em mais de 30 países; por outra parte, em termos recentes, sua origem também será fortemente ancorada na reflexão/ação da Campanha da Fraternidade de 1980, que teve como tema a problemática da migração e como lema “Para onde vais”? Tanto é verdade que basicamente todo material daquela campanha anual foi elaborado por uma equipe formada a partir e na sede do CEM/SP – Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, centro pertencente à Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos).

Desse modo, no decorrer da CF/1980, e nos anos imediatamente posteriores, o mesmo grupo que preparou os subsídios da campanha tornou-se uma espécie de embrião do que logo viria a se transformar no Serviço Pastoral dos Migrantes. A verdade é que, embora existissem dezenas (ou até centenas) de iniciativas de ação pastoral no complexo mundo das migrações, como vimos, esse esforço de muitas mãos não tinha representação oficial junto à CNBB. Esta, por sua vez, como já contava com a Pastoral Operária, a Comissão Pastoral da Terra e a Caritas Brasileira – para citar apenas três exemplos – estimulou e apoiou a criação de um canal de comunicação, ou de um porta-voz, para esses diferentes serviços que vinham sendo prestados aos migrantes em todo país. Foi assim que aquele embrião começou a germinar e multiplicar suas ramificações.

Na primeira metade da década de 1980, ocorreram vários encontros, cursos e seminários como esboços de preparação. Até que aquele grupo, agora cada vez em maior número e mais representativo, resolveu marcar uma assembleia de fundação do SPM. O evento foi realizado em Brasília-DF, com a presença de Dom Afonso Felipe Gregori, então bispo de Imperatriz – MA, e responsável junto à conferência episcopal (CNBB) pelo que então se denominava Setor Pastoral Social. Este último, por seu turno, integrava junto com alguns organismos (CERIS, IBRADES, CIMI) a linha 6 da CNBB, ou dimensão sócio-transformadora. Convém ter presente que, a essa altura, o referido Setor já reunia cerca de uma dezena de outras pastorais e organismos (p. ex. P. Operária, P. dos Pescadores, P. do Menor, P. Carcerária, P. da Criança).

O rápido histórico dos parágrafos anteriores confirma, uma vez mais, a necessidade de uma estrutura mínima como ferramenta de ação sociopastoral. Será de extraordinária relevância, portanto, que as comunidades, paróquias, dioceses e a própria conferência episcopal, em nível nacional, tentem criar uma equipe da Pastoral dos Migrantes. Não é necessário ter ilusões, no início a equipe será de duas, três, cinco ou dez pessoas! Será uma benção se ultrapassar esse número. Importante aqui é ter consciência que, quando falamos de ação pastoral ou de evangelização, os números em lugar de se somarem se multiplicam. A graça de Deus preenche nossas lacunas, fraquezas, limites e debilidades. A progressão deixa de ser aritmética para tornar-se geométrica.  

O certo é que o só pessoa tende a isolar-se, fechar-se em si mesma. Com o tempo, acaba tomada pela solidão, e até mesmo pela desilusão. Quando se juntam, as pessoas passam a ter diferentes visões, enfoques distintos, opiniões complementares. Agem a partir de várias mãos e de múltiplas cabeças. Há menos risco de erro, de engano, de tomar vias tortuosas. Além disso, “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”, diz Jesus. A ação pastoral, acima de qualquer outra coisa, necessita da sinergia de distintas forças. Somente dessa forma, a missão poderá ser enriquecida pela dimensão comunitária, pelo empenho conjunto. 

A equipe da Pastoral Migratória atua em três direções distintas, mas, ao mesmo tempo, convergentes: no interior da própria pastoral, no interior da Igreja e na sociedade civil em geral. Primeiro, procura unir os esforços de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, assumem compromissado com a causa dos migrantes, refugiados, itinerantes, estrangeiros. Defendê-los em seus direitos fundamentais e em sua dignidade humana, como lembra a Doutrina Social da Igreja. Uma vez mais, somar semelhantes esforços equivale a multiplicá-los, sobretudo se a equipe desenvolve uma espiritualidade de trabalho orgânico e de conjunto.

Depois, a equipe da Pastoral Migratória tem o direito e o dever de juntar, no interior da própria Igreja, todas as iniciativas que dizem respeito à ação entre os migrantes. Outros organismos, pastorais, diferentes igrejas e congregações também se dispõem a trabalhar com os estrangeiros. Se, por uma parte, ninguém pode eximir-se dos serviços pastorais e sociais de acolhida, abrigo, documentação, assistência e organização, por outra, deve-se evitar o monopólio sobre o campo da mobilidade humana. Todas as iniciativas, por mais diferenciadas que sejam, formam pequenos igarapés que convergem para engrossar as águas do rio e da represa. E esta última somente poderá gerar novas energias quando conta com cada gota e cada fio da corrente viva.

Por fim, a Pastoral Migratória não se encontra fechada em si mesma, nem numa espécie de angélica nuvem, ao abrigo das intempéries e tempestades da história concreta. Os serviços pastorais têm os pés fincados no chão, sujos de lama, embora possa orientar-se pela utopia do Reino. Mas este é bem maior do que a Igreja, que não passa de seu sinal visível. O Reino ultrapassa todas os projetos humanos e historicamente limitados: tem suas raízes no terreno da história, sem dúvida, mas vai muito além de da mera esfera material. Não acima, nem fora, mas além – como que nos obrigando a dar sempre um passo à frente, na direção de novos e inesperados horizontes. Mais, é uma instância que questiona e interpela todas as realizações pretensamente perfeitas e acabadas, fazendo-nos caminhar. Por isso, como têm sublinhado muitos documentos da Igreja, a migração consiste em um “sinal dos tempos” que ajuda a orientar o próprio destino. Aquele que se move, também põe em marcha a engrenagem da história.

Daí a necessidades de contar com outras parcerias fora do âmbito eclesial, tais como movimentos sociais, entidades, estudos acadêmicos e científicos, organizações não governamentais, setores do governo dispostos a colaborar, organismos internacionais, como a ONU, a ACNUR, entre tantos outros. Neste caso, a palavra chave e o trabalho em rede. Numa economia e numa cultura crescentemente globalizadas, não podemos pretender resolver o drama das migrações de modo particular. Os problemas locais se entrelaçam aos desafios planetários. “Agir localmente e pensar globalmente”, dizem determinados movimentos. Aqui também é preciso evitar todo tipo de isolamento, por um lado, e toda tentação de monopólio, por outra. O conceito de rede supera extremos de personalismo ou de autoritarismo.

  • Defesa dos direitos humanos 

Abrimos este parágrafo retomando os três “T” que o Papa Francisco utilizou por ocasião do encontro com os movimentos sociais: terra, teto e trabalho. Constituem três direitos fundamentais de toda pessoa humana. Mas não é só isso! Dois deles, terra e trabalho, representam portas abertas para outros direitos, tais como acesso à educação e à saúde, uso dos meios de transporte, participação ativa na sociedade, alimentação e vestuário, entre outros. Em termos de locomoção, todo ser humano tem o direito de ir e vir, o qual é correspondente ao direito de permanecer dignamente em seu lugar de nascimento. No caso dos estrangeiros, porém, os três “T” pressupõem uma documentação em ordem. De acordo com os dados da ONU, cerca de 270 milhões de pessoas residem atualmente fora do país em que nasceram, sem contar as migrações internas, temporárias e/ou sazonais, cujo número gira em torno de 700 milhões.

Boa parte daqueles que cruzam os confins de seu país, entretanto, permanecem de forma irregular. Convém aqui ter presente as três dimensões do conceito de fronteira. Antes de tudo, temos a fronteira geográfico-territorial, onde duas ou mais nações se encontram e se limitam fisicamente; em seguida, vem a fronteira jurídico-política, representada pela legislação migratória de cada país; por fim, sublinhamos a fronteira cultural-religiosa, onde o migrante irá se bater com expressões, costumes e valores distintos. No primeiro caso, o forasteiro, ao cruzar de um país para outro, terá problemas com as autoridades da aduana; no segundo, haverá de prestar contas às autoridades que representam os três poderes de qualquer república – legislativo, executivo e judiciário – respectivamente responsáveis pela elaboração, pela execução e pelo cumprimento das leis.

Tendo presente ainda a tríplice dimensão da fronteira, parte dos migrantes conseguem cruzar a dimensão geográfico-territorial, mas tropeçam com a dificuldade de regularizar sua situação legal. Lutam anos e anos atrás dos “papéis”, em ter a documentação em dia. Não conseguem dessa forma cruzar a dimensão jurídico-política. Acabam ficando no país de destino como estrangeiros irregulares, muitas vezes chamados de “clandestinos”, condição que os torna vulneráveis às formas mais brutais de exploração do trabalho. No limite, vivem escondidos, sempre à espreita da fiscalização oficial, chegando não raro a sofrer perseguição ou expatriação para o lugar de origem.

Outros migrantes logram cruzar a dimensão geográfico-territorial, e a seguir a dimensão jurídico-política. Mas, ao instalarem-se num determinado bairro ou cidade, acabam por sofre toda sorte de preconceito e discriminação. Em lugar de uma boa receptividade na comunidade local de destino, acabam sendo mal recebidos, ou até mesmo rechaçados. A hospitalidade se converte em hostilidade. Semelhante tensão entre os recém-chegados, de um lado, e os moradores estabelecidos, de outro, pode fazer dos migrantes “bodes expiatórios” diante de desordens sociais ou crise socioeconômicas e políticas. Em lugar de comunidades, multiplicam-se os guetos. O gueto se fecha, se isola, tende a criar uma bolha de defesa contra os possíveis agressores. A comunidade, ao contrário, mantém-se aberta ao encontro, ao diálogo e à solidariedade.

Quanto a dimensão cultural-religiosa não é ultrapassada de forma adequada, abre-se então um terreno fértil para agressividades recíprocas. Convém não esquecer que esta terceira dimensão da fronteira é justamente a mais difícil de cruzar. Ela está sobretudo na visão de mundo e na mentalidade das pessoas. Com efeito, torna-se muito difícil aceitar e conviver com novas expressões culturais e distintos valores religiosos. Tudo se encontra tradicional e historicamente arraigado em cada pessoa ou grupo. Entretanto, é justamente esse confronto de entidades diversas que permite a depuração, a purificação e a evolução de toda cultura. Esta última carrega sempre anjos e demônios, trigo e joio. Prevalecerão uns ou outros de acordo com o grau de interação e de inserção do grupo que chega a um novo lugar de moradia.

A interação sadia, por sua vez, constitui uma nova porta aberta para a conquista e defesa dos direitos humanos básicos. Sem o apoio, a amizade e a solidariedade da comunidade local, torna-se quase impossível ter acesso a uma série de veredas que conduzem a uma cidadania verdadeira. Na medida em que o estrangeiro se insere no novo lugar, na exata medida em que cria e amplia laços interpessoais e comunitários, costuram-se relações novas. Estas servirão de suporte para a superação de muitas adversidades próprias a quem troca de região ou país. 

Somente o cruzamento das três dimensões da fronteira permitirá ao forasteiro chamar o novo lugar de solo pátrio. “Para os migrantes, a pátria é a terra que lhes dá o pão”, dizia o bem-aventurado João Batista Scalabrini, tido como o “pai e apóstolo dos migrantes”. E ainda: “a migração amplia o conceito de pátria”. A verdadeira cidadania, com efeito, pressupõe o respeito aos direitos fundamentais de toda pessoa que teve de fugir da terra em que nasceu ou que optou por estabelecer-se em determinado país. Na fuga e/ou saída de país para outro pelos mais diversos motivos (primeiro conceito de fronteira), tendo conseguido os documentos de estrangeiro legalmente regularizado (segundo conceito de fronteira), o novo cidadão somente o será de fato se for reconhecido como tal (terceiro conceito de fronteira). Ou seja, cabe à Pastoral dos Migrantes oferecer sua solicitude no sentido de que, todo aquele que se vê forçado migrar e buscar uma nova terra, possa ter seus direitos reconhecidos e respeitados.

Na questão dos direitos humanos, não podemos deixar de lado os direitos trabalhistas. E isso, por sua vez, leva a ter em consideração a organização sindical. Ainda desta vez, ninguém tem monopólio sobre o drama dos migrantes. Relevante, neste caso, é buscar colaboração e sinergia com todas as forças sociais que possam ajudar o migrante a se manter de pé e lutar por seus direitos. Sabe-se, por exemplo, que não poucos imigrantes latino-americanos, na cidade São Paulo, devido à sua condição de “irregulares” no país, terminam por ser duplamente explorados. Evidente que semelhante situação não ocorre somente no Brasil, mas também em outras capitais dos países vizinhos, como também nos países centrais, mais desenvolvidos. 

  • Ponte entre origem e destino

Os contínuos deslocamentos dos migrantes, de forma implícita ou explícita, criam uma ponte de sobrevivência entre o lugar de origem e o lugar de destino. Por um bom tempo permanece vivo o sonho de retornar a casa e à pátria rever os amigos, encontrar-se com os familiares. Nos movimentos pendulares, temporários ou sazonais, a volta periódica ao ambiente familiar é garantida. Semelhantes idas e vindas, de resto, revelam um lado aparentemente contraditório da mobilidade humana. O trabalhador migra como forma de se manter fixo ao local de origem. Migração de resistência: migrar periodicamente para evitar a migração definitiva. O fato de sair por alguns meses durante o ano, seja para safras agrícolas ou grandes obras, é a maneira encontrada para cobrir as despesas que o pobre roçado ou a falta de oportunidades deixa descobertas.

Mas mesmo entre os que migram de forma definitiva, a chama viva do retorno não se extingue. Constitui não raro uma afirmação do próprio sucesso. E muitos seguramente retornariam anos mais tarde, não fosse a negativa dos filhos e netos, os quais pouco ou nada têm a ver com o país dos pais e avós. É comum que migrantes melhor sucedidos, por exemplo, façam uma viagem mais ou menos periódica a seus países de origem. As bases que alicerçam a referida ponte de sobrevivência entre as duas margens da viagem travessia – origem e destino – são sobretudo as remessas pontuais dos emigrados a seus familiares. Grande número dos que partem, o fazem com a responsabilidade tácita ou aberto de manter a família à distância. O que explica as privações porque passam tantos imigrantes, de forma toda especial nos países de florescentes oportunidades. Os pais, os maridos ou os filhos mais velhos, em particular, carregam esse compromisso, abstendo-se de maiores gastos e, por vezes, morando em condições extremamente precárias.

Evidente que a ponte de sobrevivência se constrói, em primeiro lugar, com os membros do núcleo familiar. Em seguida, com o passar do tempo, costuma ampliar-se para outros parentes, e mesmo para os amigos. A tal ponte, no fundo, faz parte de uma grande rede de proteção bem mais abrangente, e que envolve os mais variados laços de parentesco e de vizinhança. A partir dessa rede, não é raro que se mantenha uma espécie de corredor migratório através do qual reproduz-se no ambiente urbano as relações interrompidas no lugar de origem. É assim que as duas “ferramentas” – ponte e rede, respectivamente de sobrevivência e de proteção – se fundem e se entrelaçam para manter ligações dura e longamente construídas, ou para aprofundar a coesão de determinado povoado/aldeia predominantemente rural. 

Até mesmo os casamentos, muitas vezes, são “arranjados” com esses instrumentos de socialização, para sequer falar das trocas comerciais. Entre o polo de origem e o polo de destino, por outo lado, eram muito comuns o intercâmbio de cartas, as quais hoje em dia foram sendo substituídas pelos telefonemas. Umas e outros convertem-se em veículos das notícias que envolvem essa espécie de “clã”. Lá e cá, curiosamente, muitas vezes prevalece uma linguagem tradicional, ao mesmo tempo comum ao grupo e fechada ao mundo externo, como nos “inhos” próprios da intimidade familiar. A migração parece cristalizar determinados costumes e expressões.

O conceito de “dupla ausência”, cunhado por Abdelmalek Sayad, sociólogo argeliano radicado na França, ganha nova luz nesse cruzamento da ponte com a rede. Claro que o migrante transita com certa frequência entre uma e outra. Depois de um tempo no país de destino, passa a ser visto na terra natal com estrangeiro; e inversamente, quando sai outra vez do próprio país, é como estrangeiro que retorna ao lugar que escolheu como nova pátria. Sofre a sensação de estranho e ausente nas duas margens da ponte. Depois, será visto também como estranho e migrante em todo tecido social da rede de proteção que ele próprio ajudou a tecer.

Não será exagero concluir que, da mesma forma que os migrantes constroem uma ponte de sobrevivência e uma rede de proteção nas suas idas e vindas, também a Solicitude evangélica para com eles, por sua vez, possa construir uma ponte pastoral entre origem e destino dos fluxos migratórios. Ponte pastoral que, evidentemente, deverá desenvolver suas próprias “ferramentas”, tais como visitas periódicas e anuais, feitas reciprocamente entre um ponto a outro; missões populares, igualmente recíprocas em ambos os polos; presenças significativas, e de formação, nos dois lados; intercâmbio de informações relevantes, inclusive com a criação de um boletim de cá e de lá; combate à propaganda enganosa feita por parte dos “gatos”, interessados em fornecer mão-de-obra fácil e barata, de maneira especial para desmatamento, safras agrícolas, grandes obras estatais, criadores de gato e/ou empreendedores do agronegócio!…

O importante é que possam fazer parte desse intercâmbio pastoral não somente agentes pastorais qualificados, mas também lideranças e representantes dos próprios migrantes, bem como de seus familiares. Essa presença pastoral, seja nas comunidades de origem, onde moram os migrantes com suas famílias, seja nos locais de destino, onde se alojam precariamente os trabalhadores, reforça nestes últimos a ideia de que a Igreja jamais os abandona, estejam eles onde estiverem. Com isso, sentem-se mais fortes e revigorados para enfrentar as adversidades da ausência temporária ou definitiva. Dependendo das circunstâncias, além dos polos de origem e destino, os trabalhadores migrantes podem ser acompanhados durante o trânsito, não raro feito de forma clandestina.

Entre os migrantes temporários/sazonais, particularmente, o fato de encontrar “o bispo, o padre, a irmã, o agente pastoral ou um líder comunitário”, tanto na aldeia onde habita com a família quanto no local onde trabalha durante 6-7-8 ou mais meses, fazem-nos sentirem-se, eles mesmos, parte da Igreja. Desnecessário sublinhar a importância de um programa ou de um calendário de atividades nas comunidades, paróquias e dioceses envolvidas pelo fenômeno migratório. Vale o mesmo para os movimentos e pastorais sociais. Deverão entrar em pauta, como já vimos anteriormente, as devoções populares, as comemorações dos padroeiros/as celebrados nos lugares de origem, as expressões culturais e religiosas próprias de cada grupo, estado, região!…

A Pastoral dos Migrantes pode, ainda, usar e potencializar essa ponte e essa rede para o bem da organização dos migrantes. Muitas atividades de caráter sociopastoral, levando em conta esse caminho já batido por aqueles que se deslocam com frequência, ganham maior força e eficácia. Trata-se de um reforço numa perspectiva recíproca: ao mesmo tempo que a pastoral encontra maior agilidade por contar com essas “ferramentas”, os migrantes tendem a redobrar sua coesão e proteção com a roupagem da espiritualidade. Como já vimos, de resto, o encontro e intercâmbio de expressões e valores culturais e religiosos sempre enriquece todos os envolvidos.

  • Resgate histórico-cultural da pessoa e/ou etnia

No coração de cada pessoa, única e irrepetível; no coração de cada cultura, povo, raça ou nação; e no coração da humanidade como um todo existem embriões de valores com enormes potencialidades de desenvolvimento. Língua e linguagens; diferentes visões de mundo; expressões artísticas diversificadas; literatura e mitos em geral, além de escritos de política e de moral particular; tatuagens, gestos, costumes, formas de vestir; ritos, devoções e fórmulas religiosas; culinária, música e dança, saberes e sabores – eis uma “caixa” de ferramentas/instrumentos com os quais os seres humanos se comunicam e tecem sua história e riqueza cultural. Desnecessário lembrar que, ao migrar de um lugar para outro, temporária ou definitivamente, as pessoas, grupos ou etnias distintas levam consigo tais sementes de vida e de convivência. Tudo isso, aliás, constitui a parte mais íntima e intransferível de sua bagagem e de sua memória viva.

Diante desse universo, ao mesmo tempo tão rico e tão plural, cabe uma pergunta para a Pastoral dos Migrantes: de que maneira promover espaços e tempos apropriados para que os migrantes, em grupo ou individualmente, possam manifestar suas expressões e seus valores longa e tradicionalmente costurados? Como realizar nas diversas instâncias da pastoral e das ações sociais um resgate histórico e cultural dos migrantes enquanto pessoas e enquanto grupos e etnias? E de que forma fazer esse resgate, não como se fosse o recheio do bolo, e sim como algo que faz parte da massa? Mais ainda, como algo que constitui a identidade sagrada de todo migrante! São sementes e embriões que, ao desenvolverem-se, abrem um processo de depuração, purificação e superação dos vícios, em vista de potencializar as virtudes e o bem-comum.

Semelhante memória viva representa um espelho onde podemos nos confrontar. Cada pessoa e cada grupo étnico necessita desse espelho do “outro, diferente, estrangeiro” para evoluir em suas potencialidades. “O outro – escreve com razão o filósofo alemão H. G. Gadamer – tem mais a dizer sobre mim do que sobre si mesmo”. Enquanto para Sarte “os outros são o inferno”, para E. Leninás “o outro é o caminho para chegar a mim mesmo e ao Totalmente Outro”. A conclusão evidente é de que a identidade só pode crescer, desenvolver-se e se consolidar no embate dialógico e permanente com o outro. Numa palavra o imigrante ou estrangeiro torna-se conditio sine qua non tanto para a evolução de uma pessoa quanto de um grupo humano.

Disso resulta a importância de tomar em mãos a história e as expressões culturais das diversas etnias de migrantes. Além disso, como nos ensina a psicologia, falar sobre o passado é uma forma de libertar-se de seus pesadelos. Verbalizar as próprias sombras é iluminar os recantos obscuros da alma, exorcizando o medo dos fantasmas. A história, de resto, ou será um fardo pesado sobre os ombros, ou uma fonte de recordações que nutre o presente e o futuro; ou será uma entidade fantasmagórica assustadora, ou um tesouro do qual podemos tirar pérolas cheias de brilho. Tudo depende do olhar com o qual avaliamos a travessia de nossa existência. Uma forma sadia é olhar o retrovisor não para permanecer morbidamente amarrado aos traumas do passado, mas para pisar logo no acelerador e avançar para um amanhã recriado. É lícito visitar o museu, sem dúvida, mas não para cristalizar-se ali como múmia embalsamada, e sim como um forasteiro que em seguida retoma seu caminho interrompido. “Estudar a história é a melhor forma de evitar seus erros”, diz o provérbio.

Isso quer dizer, entre outras coisas, que na Pastoral dos Migrantes o resgate histórico-cultural deve estar a serviço de um empenho pela inserção no local de destino. Inserção que na maioria das vezes será lenta, sim, mas também progressiva. Os anjos e demônios do passado não podem determinar a convivência no presente nem a rota do futuro. Ao contrário, devem ser vistos tal qual são, com seus limites e suas potencialidades, para ajudar a abrir novas alternativas. Convém não esquecer, uma vez mais, que grande parte dos migrantes vem de uma situação de fuga. A condição de fugitivos, entretanto, não deve paralisar ou condicionar as iniciativas a serem tomadas. Talvez o maior desafio da Pastoral, e consequentemente do migrante, seja o de transfigurar a fuga em nova busca. Em outras palavras, não se trata de alimentar uma fobia ou saudosismo, ambos doentios, mas de lançar-se a um processo de inserção que implica trabalho e emprego, chave para abrir uma série de outras portas, como saúde e educação, por exemplo.

Reavivar a memória não significa voltar para trás, seja no sentido de deixar-se dominar pelos fantasmas do medo e da angústia, seja no sentido de nutrir falsas ilusões sobre o “paraíso perdido”. Diante do que ficou para trás não cabe nem depressão nem euforia! Em lugar disso, o resgate histórico vai de par e passo com a recriação de novas relações interpessoais e sociais no lugar de chegada. Expressões e valores culturais funcionam como retrovisores que, longe de recuar, ajudam a movimentar o carro. Nada de engatar a marcha-a-ré, mas pisar no acelerador. Aquela nova busca a que nos referíamos mais acima pressupõe o resgate da história, mas com a perspectiva de tecer relações novas de vizinhança e de amizade – relações comunitárias e sociopolíticas. Estas relações jogam luz nova sobre a vida passada, convertendo-se por isso mesmo em um suporte para a iluminação, a depuração e a superação dos motivos da fuga. A trajetória se faz, desfaz e refaz sobre outras motivações, agora renovadas pela esperança e pela solidariedade. É nesta direção e com essa bússola comunitária que a busca pode abrir novas rotas no mar bravio, localizar o farol e seguir com firmeza rumo a um porto seguro.

Outro risco a ser evitado no resgate da história e da cultura de pessoas e povos consiste em transformar sua riqueza e patrimônio em mero folclore. É o que fazem muitas vezes os meios de comunicação convencionais ou as redes sociais. Pessoas e grupos então se convertem em uma espécie de marionetes, e estas são manipuladas e instrumentalizadas para repetir uma e outra vez os mesmos gestos. Convém jamais esquecer que o folclore alimenta a curiosidade superficial, enquanto os valores culturais nutrem a conhecimento verdadeiro e profundo. O folclore não passa, na verdade, de uma aparente imitação, ao passo que intercâmbio cultural é diálogo de corações, mentes e almas. Neste caso, está em jogo visões de mundo que tentam encontrar-se, cruzar seus saberes e enriquecer-se mutuamente. Enquanto o folclore procura responder à expectativa imediata do eventual viajante ou turista, o estudo da cultura e da história respondem à esperança de apreender algo mais do patrimônio comum da humanidade.

  • Calendário religioso-litúrgico, cultural e civil

Cada região e cada povo tem seu calendário civil, cultural e religioso-litúrgico. Mesmo longe da própria terra natal, os migrantes costumam preservar suas tradições festivas, sejam estas devocionais, culturais ou festivas. Em terra estrangeira, seguem o calendário de sua gente. Tanto que, não raro, tornam-se mais formais, ritualistas e rigorosos do que aqueles que jamais migraram. De resto, isso não é difícil de explicar. Enquanto a árvore está ligada à terra, continua se alimentando com os ingredientes do solo onde veio à luz. Da mesma forma que a árvore e o animal, todo ser humano é igualmente um organismo vivo. Enquanto se nutre da terra em que nasceu segue evoluindo numa determinada via. Ao ser arrancado, porém, as raízes deixam de recolher esses ingredientes originários e passam a diversificar sua “dieta”. Novas trilhas evolutivas surgem e se desenvolvem, ao passo que as expressões originais tendem a se cristalizar.

Basta notar como as colônias italianas ou alemães do Rio Grande do Sul, por exemplo, seguem com os rituais, a culinária, as canções e os costumes que, muitas vezes, foram já abandonados na terra de origem de seus ancestrais. O mesmo se pode afirmar do povo português que vive no estrangeiro. Enquanto em solo pátrio a devoção a Nossa Senhora de Fátima, por exemplo, sofreu certo arrefecimento, prossegue muito viva e ativa nas comunidades e paróquias dedicadas aos imigrantes portugueses nos Estados Unidos e Canadá, Luxemburgo, França e Suíça, Austrália e Venezuela, Brasil e Canadá. Outros exemplos poderiam ilustrar igual tendência nos emigrados de muitas nações, como os paraguaios em Buenos Aires, Argentina; os mexicanos e centro-americanos na região de Los Angeles, EUA, os bolivianos em São Paulo, Brasil.

Em todos esses casos, o ato de migrar e de desvincular-se de um chão conhecido tende a perpetuar expressões, ritos e valores que, no lugar de origem, seguem organicamente mudando, transformando-se e evoluindo. No estrangeiro, porém, a saudade e o instinto natural de autodefesa e de coesão guardam tais tradições. Estas, entretanto, estando fora, desenraizadas do solo em que germinaram, deixam de absorver e de se alimentarem com os ingredientes da “infância”, digamos assim. Por isso mesmo se mantêm como que petrificadas, mumificadas. Neste caso, vale insistir, a evolução segue as trajetórias do lugar de destino, pois é dessa nova terra que extraem a água e os demais nutrientes. Os frutos dependem do que as raízes conseguem captar.

Entra em cena, então, o papel decisivo da Pastoral dos Migrantes. O serviço adquire uma dupla dimensão. Por uma parte, deve procurar respeitar o calendário de origem de cada grupo ou etnia, promovendo iniciativas de tempo e espaço que levem as pessoas a se manifestarem através das próprias expressões culturais e religiosas. Por outra parte, deve igualmente empenhar-se ao máximo pela inserção do estrangeiro no novo lugar de destino. Duas faces da mesma moeda: levar em consideração as datas e comemorações festivas da tradição cultural dos migrantes e, ao mesmo tempo, não medir esforços pela sua integração. Apesar de atividades paradoxalmente contraditórias, ao contrário, ambas representam uma só preocupação conjunta e inseparável.

Com frequência, o migrante dá-se conta dessa ambiguidade antes mesmo dos próprios agentes de pastoral. E por um motivo simples: ele precisa da inserção na sociedade onde acaba de chegar, se quiser ter acesso mais rápido e eficaz ao mercado de trabalho, porta que, por sua vez, abre outras vias de integração social, tais como moradia, escola, saúde, boa vizinhança, amizade, maior conhecimento, e assim por diante. Nesta perspectiva, a Pastoral dos Migrantes necessita estar atenta para não retrasar as vias de entrosamento do migrante, com o pretexto de respeitar seus costumes e expressões culturais. Vale o cuidado para não propor iniciativas que contrariam e retardam o relacionamento sadio do estrangeiro com a comunidade local. Não custa lembrar, de resto, que muitas vezes por trás do discurso da identidade cultural e de sua manutenção, podem esconder-se não poucos vícios pessoais, familiares ou comunitários.

Se é verdade que a memória afetiva do migrante ajuda a reavivar a união e a coesão de determinado grupo étnico, também é certo o saudosismo doentio quanto a essa mesma memória pode criar barreiras à progressiva inserção. Por vezes gera não só obstáculos, mas até mesmo aversão e hostilidade. De ambos os lados, crescem então as tensões e a desconfiança. A potencialidade inicial de uma aproximação recíproca converte-se na possibilidade de um recíproco distanciamento. O caminho da enculturação torna-se mais distante árduo e laborioso. Aqui, como já vimos anteriormente, vale o bom senso e a sabedoria de dosar com cuidado e critério as duas coisas: resgate histórico-cultural, por um lado, e processo de inserção, por outro. 

Acrescido às festividades típicas de cada nação, existe também o calendário nacional e internacional das lutas sócio políticas: dia mundial da mulher, dia da consciência negra, dia do trabalhador/a, dia internacional do migrante e refugiado, dia de comemoração dos direitos humanos, dia mundial dos pobres, dia do índio ou da consciência negra, grito da terra, grito dos excluídos, semana do migrante, datas ligadas à preservação do meio ambiente, entre tantas outras. Estes momentos, além disso, são importantes para uma dupla forma de aproximação: das diferentes etnias entre si, e destas com a comunidade local. Ao acompanhar mais de perto essas celebrações universais, as pessoas e grupos empreendem, em maior ou menor grau, um processo de quebrar muros e erguer pontes, para usar a expressão cara ao Papa Francisco. E empreendem, ao mesmo tempo, uma tomada de consciência dos direitos humanos em termos planetários. As lutas locais e as preocupações globais se entrelaçam e se reforçam.

  • Formação permanente

O quadro da mobilidade humana em geral e, em particular, os diversos deslocamentos migratórios mudam com a velocidade dos tempos modernos. Tais mudanças dependem dos mais variados fatores, sejam eles de ordem econômica, social, política, cultural ou religiosa. Transformações profundas e subterrâneas na política econômica, hoje cada vez mais globalizada, implicam em ondas crescentes na superfície, o que se configura como deslocamentos de massa em distintas direções. Os movimentos migratórios, por sua vez, oscilam de acordo com a concentração de riqueza e renda, por um lado, e de carência e exclusão social, por outro. As assimetrias socioeconômicas em nível local e nacional, regional ou global, com seus efeitos devastadores sobre o trabalho e emprego, desemprego e subemprego, ou sobre a pobreza, a miséria e a fome – constituem fatores de grande desenraizamento humano.

Semelhante cenário da mobilidade humana exige uma atualização permanente a respeito das correntes e movimentos migratórios, uma forma de acompanhamento atualizado sobre os fluxos e suas diferentes direções. Cabe um exemplo emblemático. Décadas atrás, a Síria, com cerca de 6,7 milhões de fugitivos de uma sangrenta guerra, assumiu o trágico papel de maior “fornecedor” de refugiados para outros países, vizinhos ou não; depois, foi a vez do Sudão do Sul, com cerca de 2,2 milhões de refugiados; em seguida, veio a Venezuela, com nada menos do que 5,0 milhões de pessoas que deixaram o país; agora, com a saída das tropas norte-americanas do Afeganistão e a retomada do poder pelo talibã, parece que este país repetirá a mesma tragédia. Não seria difícil encontrar exemplos semelhantes para o caso da pobreza e da falta de oportunidades em países como a Etiópia, a Eritreia, Angola e Cabo Verde na África; o Bangladesh, as Filipinas e a Indonésia na Ásia; a Bolívia, o Peru, o Equador e vários países centro-americanas nas Américas; países da ex-União Soviética na Europa.

O estudo das migrações exige, simultaneamente, boa dose de humildade e de parceria. São duas atitudes correspondentes, que sempre andam de mãos dadas. A humildade nos faz reconhecer as próprias limitações, pelas quais os fluxos migratórios sempre acabam por nos surpreenderem. Vez por vez nos vemos como que atropelados por gigantescas avalanches de peregrinos, tanto por causa da violência quanto devido à pobreza e aos desastres climáticos. Quanto à parceria, irmã gêmea da humildade, leva os agentes da Pastoral dos Migrantes a buscar os conhecimentos acadêmicos especializados. Já foi o tempo em que os membros da Igreja, não raro, carregavam a pretensão de saber tudo. Atualmente, na exata medida em que o mundo se abre à pluralidade e à complexidade de contextos e saberes, faz-se necessário estabelecer parceria com pessoas, grupos e instituições que possam ajudar-nos no conhecimento atualizado da migração.

Felizmente, até mesmo no interior das Congregações Scalabrinianas, mas também nos departamentos de sociologia, geografia humana e demografia – para citar somente esses exemplos – podemos contar com pesquisas sobre as mais variadas frentes migratórias. A migração como tema de atenção e estudo, de resto, tem emergido com força a partir da crise da economia mundial. De alguma forma, os migrantes e refugiados tendem a seguir de perto os passos da globalização. A concentração da produção e da riqueza concentra igualmente as oportunidades. O movimento da economia, combinado com a disputa pelas encruzilhadas geopolíticas e os extremismos climáticos, fazem mudar constantemente a origem e o destino de milhões de pessoas. Mudam igualmente suas rotas e direções, sempre de acordo com os ventos e as migalhas do capital.

De outro lado, nos últimos anos o avanço da extrema direita em diferentes países, com políticas restritivas, discriminatórias e xenófobas, tem feito aumentar a pressão sobre as zonas fronteiriças. É o que se vê em países como a Líbia, a Turquia, a Grécia, Portugal, o sul da Itália, a Guatemala e o México, entre outros. Se, por uma parte, se restringe ou se fecha a possibilidade de migração legal e regular, via aeroportos, por outra parte, os migrantes se concentram sobre as fronteiras, na tentativa de romper muros e chegar ao ansiado Eldorado. O caso mais emblemático, sem sombra de dúvida, é a pressão das caravanas centro-americanas sobre a longa fronteira entre México e Estados Unidos, mas também as rotas mediterrânea e balcânica que, ao mesmo tempo, unem e separam o continente africano e o Oriente Médio da Europa.

O estudo profundo e atualizado das migrações, como não poderia deixar de ser, precisa de método, critérios e orientação. Não faltam interpretações distintas, e nem posições político-ideológicas diferentes, ou até mesmo contraditórias. O material é abundante, plural e interdisciplinar. Livros e bibliotecas inteiras foram escritos sobre a temática. De um ponto de vista acadêmico e científico, podemos remeter os interessados aos artigos das respectivas revistas publicadas periodicamente pelos já referidos Centros de Estudos Migratórios das congregações scalabrinianas. Desde o ponto de vista pastoral, diversos documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI) têm abordado a temática da mobilidade humana em suas mais variadas dimensões. Para um caminho mais acessível a todos, recomendamos o livreto Método dos 4Rs – para uma leitura popular das migrações, publicado em 2019 pelo Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM).

  • Espiritualidade do caminho

No item 3 dizíamos que o episódio dos discípulos de Emaús figura como uma espécie de “evangelho” para a Pastoral dos Migrantes (Lc 24,13-35). Para o desenvolvimento da espiritualidade do caminho, tomemos esse texto como pano de fundo, por um lado, e a realidade do migrante enquanto “estrangeiro, estranho e diferente”, por outro. Podemos refletir um pouco a partir de cinco palavras chave: caminho, encontro, convite, casa, porta, mesa e missão. O objetivo é desenvolver alguns elementos na busca de uma espiritualidade do outro, da alteridade. Vale lembrar que os comentários a seguir, com as devidas alterações, podem aplicar-se também ao conjunto das Pastorais Sociais e a cada uma delas em particular. 

 

a). Os Discípulos de Emaús

O Caminho

Os discípulos estão a caminho. Na verdade, estão fugindo. É o caminho do medo, da insegurança, da frustração. O projeto daquele Galileu fracassou. Se ele foi morto na cruz, o que não poderá ocorrer com seus seguidores. Cabisbaixos, amargam a derrota e a desilusão. Daí a fuga, o retorno a casa. Tudo se acabou. A proposta do Reino de Deus terminou em nada! Pior, terminou no calvário, com a morte do chefe. Esta situação de fuga se repete nos dias de hoje em termos planetários. Famílias aos milhões são expulsas do campo. Trabalhadores dos países pobres se aventuram em direção aos centros da riqueza e do poder. Há refugiados e migrantes clandestinos por todo lado. Multidões em êxodo pelas estradas do mundo. Aliás, desde o Antigo Testamento, como vimos, Ihaweh é um Deus a caminho, Deus da tenda e do cajado, do livro do Êxodo, ou Deus do “arameu errante”, como mostra o chamado credo histórico (Dt 26,5-10).

Mas no caminho surge um forasteiro, um estranho. Parece curioso. “O que vocês estão conversando, porque estão tristes”? Quer olhar o rosto dos caminhantes, quer ouvir sua voz, quer acompanhar seus passos. Revela grande delicadeza: fazer-se forasteiro para entrar no mundo do outro. Sabe perder tempo com quem está angustiado, sem rumo, sem destino, sem raiz. Aqui está um ponto de partida para a mística da alteridade. Conhecer o outro em seu caminhar, às vezes triunfante e outras vezes penoso. Conhecê-lo no cotidiano de sua existência. Conhecer as condições de vida e de trabalho. Saber do sofrimento, dos sonhos e das esperanças. Isso exige um corpo-a-corpo, exige caminhar junto, “jogar conversa fora”. Deter-se diante da dor e da festa. A caravana de Jesus, no Evangelho, jamais atropela uma dor. Diante de alguém que sofre, a caravana se detém, interroga, se compadece e age. 

O Encontro

O diálogo ocorre no caminho, a caminho. Em primeiro lugar, é um encontro entre a vida e a Palavra de Deus. Mas, novamente, é preciso reconhecer a delicadeza do Mestre. Primeiro, dá espaço para que a vida se manifeste. O que ocorreu para vocês estarem tão tristes? A vida, em suas “alegrias e tristezas”, tem a primazia. Qual é a lição deste segundo passo da pedagogia de Jesus? Os embates pela vida, por si só, estão impregnados pela Palavra de Deus. A Palavra de Deus não é algo que se acrescenta à luta do dia-a-dia. É algo que entra em diálogo com a existência. Somente após ouvir o que tinham a dizer, é que o forasteiro cita as passagens bíblicas. Estas ajudarão a enxergar melhor o caminho. Não é uma luz que cega, como no caso da leitura fundamentalista, mas ilumina.

Além disso, constata-se o respeito à alteridade. O outro tem espaço e tempo para dizer a sua palavra. Afinal, como diz a Doutrina Social da Igreja, “no coração de cada ser humano e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo”. É preciso abrir o diálogo para que a riqueza de cada um se encontre. Encontro é reciprocidade. A verdade não está com ninguém, está no diálogo; não está aqui ou acolá, está no caminho; ou, como diz Guimarães Rosa, “não está no começo ou no fim, mas encontra-se para nós no meio da travessia”. A verdade é busca, descoberta. Ela se manifesta a partir de corações abertos e dispostos à partilha.

Encontro e diálogo são também poço. É o caso de Jesus e a Samaritana (Jo 4,1-42). Duas pessoas, duas sedes e duas águas se encontram na beira do poço. Ambas as pessoas confessam sua sede, ambas revelam sua água. Ninguém é só sede, ninguém é só água. Ninguém é sede o tempo todo, ninguém é água o tempo todo. Somos todos uma mistura de sede e água. O importante é ter a coragem de revelar a própria sede e humildade para falar da própria água. Que mistério profundo! Um Deus que diz diante de uma pecadora: “Dá-me de beber!”. A prática de Jesus é feita de encontros. Sua evangelização se dá através de diálogos. Ele vai abrindo poços pelo caminho. Na maioria das vezes, poços proibidos. Neste caso da Samaritana, três vezes proibido: ela era mulher, estrangeira e prostituta. 

A partir desses poços, água e sede se encontram, se conhecem, se nutrem e se saciam. As pessoas crescem e reciprocamente se enriquecem a partir do encontro. É a mão dupla do processo de evangelização. Evangelizar é, antes de tudo, deixar-se evangelizar pelo outro. Temos aqui um novo caminho de espiritualidade. Como abrir poços entre os excluídos, os estrangeiros, os estranhos? Claro que é necessário romper fronteiras, desconhecer preconceitos, combater a discriminação e a xenofobia. Abrir espaços para as manifestações culturais e religiosas das pessoas, grupos e povos, sejam eles de que origem forem. Permitir que aflorem as riquezas ocultas. Beber dessa água e, ao mesmo tempo, oferecer do próprio poço. Cada pessoa é um poço. Cada cultura também. Igualmente neste caso a verdade está na mútua descoberta.

O convite

Aparentemente são os discípulos que convidam o forasteiro a entrar. Porém, um olhar mais atento vai dar-se conta que a iniciativa é de Jesus. Ele “faz de conta que vai adiante”, ou seja, deixar entender que está à disposição, mostra que tem todo tempo do mundo. Se convidarem, o forasteiro entra; caso contrário, segue o seu rumo. Mais uma vez, nota-se a sua delicadeza. Confrontando com outros episódios do Evangelho, é como se Jesus se convidasse, porque anseia o encontro. Estamos diante de um terceiro passo, no processo de aproximação com o outro. No ato do convite, o outro é ainda um desconhecido, um forasteiro. O convite faz com que o forasteiro se torne irmão. O encontro e o diálogo já aproximaram os caminhantes. O convite faz avançar a nova relação que vem se desenvolvendo entre eles. Cresce a intimidade, a confiança, a ponto de chamar para dentro de casa. Convidar é dizer que o outro “é dos nossos”. Pode entrar que a casa é sua, sinta-se à vontade.

A Igreja hoje, em muitos casos, não constitui um convite para que os pobres se sintam em casa. Os templos, por mais que escancarem suas portas, não atraem os mais excluídos entre eles. Por uma série de razões, sentem-se estranhos e estrangeiros nos espaços da Igreja. O que fazer? A resposta de Jesus é transparente: pôr-se a caminho. Fazer-se convite vivo pelos becos, ruas e praças, favelas e cortiços, campos e cidades, presídios, prostíbulos, alojamentos de trabalhadores, lixões… enfim, criar pernas e “sair das sacristias”. Quando as portas abertas da Igreja não são um convite a que o outro/pobre nela entre, é preciso que os pastores, presbíteros e agentes de pastoral se façam, eles próprios, convites vivos nas situações de maior marginalização. Entre estas realidades mais sórdidas, destacamos nos dias atuais o mundo da mobilidade humana, com seu vaivém sem fim.

As consequências parecem evidentes. Temos de marcar presença nos caminhos do migrante. Temos de reconhecer no outro, desenraizado e sem pátria, um desafio à nossa missão evangélica. Daí a importância das missões populares, do acompanhamento na origem e destino, dos vicariatos especiais e de outras iniciativas pastoralmente inovadoras. Diante de uma realidade móvel, dinâmica e complexa como o mundo das migrações, é preciso renovar no conteúdo e nos métodos. Acima de tudo, é preciso superar as barreiras que nos impedem de ir ao encontro. Como Jesus, é preciso pôr-se a caminho, para que estas populações constantemente em trânsito possam sentir-se Igreja. Nem é necessário lembrar, a esse respeito, o testemunho de Scalabrini, quando deixa a própria diocese, na Itália, e empreende suas visitas aos migrantes nas Américas.

A Casa/mesa

A casa é a roupa de um grupo, de um casal ou de pessoas que se amam. É a roupa da família. Um grupo que se ama, quando não tem casa, é como uma pessoa nua em praça pública. Vê-se obrigada a expor sua intimidade mais secreta a olhares e comentários estranhos. A nudez assim exposta torna-se uma ferida. Nestas condições, é muito difícil manter a dignidade. A casa – paredes, piso e teto – revestem a nudez do amor. O amor, como a flor, é frágil e delicado. A casa possibilita um lugar de privacidade onde ele possa defender-se das agressões, das tempestades e das intempéries da cidade. A tendência do amor é crescer, desenvolver-se e transbordar. Mas isso só será possível a partir de um núcleo íntimo onde ele possa germinar e criar raízes. A casa é esse lugar de intimidade.

Sem ela a família, o grupo ou o casal ficam expostos a todo tipo de curiosidade. Escancarados e vulneráveis à violência das ruas. Claro que isso enfraquece, debilita, gera medo, insegurança, instabilidade constantes. Com o tempo o próprio amor corre risco. O amor precisa de uma veste, uma roupa para proteger sua nudez. O estranho, o outro, entra na casa e passa a fazer parte da família. Desfruta e oferece a intimidade simultaneamente partilhada. Passa a ser amigo e irmão. Isto não significa anular as diferenças, nem apenas conviver com elas numa coexistência pacífica. Significa deixar-se penetrar pelos valores um do outro e buscar, através de uma relação nova, o recíproco enriquecimento.

No Antigo Testamento, especialmente nos salmos, a casa de Javé representa a rocha, a fortaleza, o refúgio, o abrigo, solidez. Casa é intimidade com Deus, com os irmãos e consigo mesmo. Espaço privado onde a pessoa se sente segura e protegida. Casa é proteção que renova as forças para enfrentar as ruas, a cidade, a multidão. “Minha alegria é habitar na casa de Javé”, diz a oração (Sl 27,4). No testemunho das primeiras comunidades cristãs, particularmente na primeira carta de Pedro, verifica-se que a casa é a própria comunidade. A comunidade, a união entre os cristãos torna-se a “casa” dos que estão dispersos, fora de sua terra. Os que são humilhados e ameaçados, por serem estranhos e estrangeiros, encontram na comunidade um abrigo, um refúgio, uma casa.

Não é esse o sentido dos Centros de Acolhida aos Migrantes? Oferecer ao povo caminheiro um lugar de convívio, de intimidade partilhada, de proteção, de encontro e de apoio. A comunidade converte-se em teto, piso e paredes onde a vivência evangélica se faz solidariedade para com os que não têm nome, não têm lugar, não têm trabalho, muitas vezes não têm parentes. Casa, aqui, adquire o sentido de família. E até de cidadania. Quem está permanentemente a caminho precisa de um lugar de referência, de uma nova família, de uma casa. Ali poderá reencontrar-se consigo mesmo, com os irmãos sofredores e com Deus. A casa nos leva à mesa. O que se come na mesa? Pão, arroz, feijão, farinha, salada, batata, massa, mandioca, abóbora… Mas não é só isso. Na mesa come-se também o outro. Na refeição, a gente se alimenta do pão e da presença dos outros. Come-se o olhar, o sorriso, o gesto, as palavras, os segredos, as alegrias e tristezas, os fracassos e sucessos de quem está à nossa frente. Come-se sua vida, sua história e sua cultura. O comer humano é tão sagrado que requer o comer-se.

Alguns exemplos podem ilustrar. Nada mais triste que comer sozinho, comer entre estranhos ou sentar-se à mesa após um conflito não resolvido. A presença amiga dos outros são o melhor tempero da comida. Quanto mais profunda a relação entre os que se sentam à mesa, mais saboroso o alimento. Quanto convido alguém para uma festa, não estou com fome apenas de comida. Minha fome é muito mais forte, minha sede mais profunda. Quero alguém a meu lado. Quero partilhar a refeição com outras pessoas. Tenho fome de gente, de companhia, de amigos e amigas. Mas a mesa também é questionamento. Ela celebra a amizade, mas também se interroga. Por que nem todos foram convidados. Onde estão os outros? Por que tantos se vêm excluídos da refeição? Onde estão os pobres, os quais, aliás, trabalharam para que este alimento chegasse até aqui. Por que não estão presentes? Por que tantos se quedaram perdidos pelas estradas? Estas perguntas revelam uma fome mais funda ainda. Isto é, quanto mais pessoas sentarem à mesa, maior será o sabor da comida e a alegria dos amigos. Enquanto houver um irmão ou irmã excluído do banquete, a festa não será plena. Quantos migrantes atualmente vêm-se à margem dos benefícios do progresso!

Mesa é altar e eucaristia. A eucaristia celebra e questiona. Celebra o caminho percorrido e pergunta pelo que ainda não conseguimos fazer. Celebra a partilha, mas pergunta porque nem tudo está ainda eucaristizado. Temos ainda muito caminho pela frente. É preciso eucaristizar as relações humanas, pessoais, familiares, comunitárias; as relações sociais, políticas e econômicas. É preciso eucaristizar a terra e os frutos do trabalho do homem e da mulher. Tudo isso nos leva a uma distribuição da riqueza justa e fraterna. Quanto tudo estiver sobre a mesa e esta não deixar ninguém do lado de fora, então sim a festa será total e o banquete incluirá a todos e todas.

Jesus reúne os amigos mais íntimos ao redor da mesa. “Tomai e comei, isto é meu corpo”; “tomai e bebei, este é o cálice do meu sangue” (Jo 13). Alimentem-se de mim que estou aqui com vocês e que, depois, estarei sempre com vocês. Alimentem-se também uns dos outros, amem-se, sejam fraternos. No episódio que estamos refletindo, Ele repete o gesto. Parte o pão e é imediatamente reconhecido. A melhor forma de diminuir o abismo que nos separa do outro é trazê-lo à nossa mesa, dividir com ele o pão ou a fome, a fartura ou a carência.

A mesa nos convida a profundar as relações com o outro. Relações entre homem e mulher, relações entre companheiros e companheiras de caminhada, relações na rua, no caminho, no trabalho, na comunidade, na família, enfim, todo tipo de relacionamento humano. O pleno sabor da comida é proporcional à plena união entre os filhos e filhas de Deus. A mesa é ponto de chegada e ponto de partida. Ponto de chegada, na medida em que reunimos os caminheiros para festejar uma etapa vencida; ponto de partida, porque precisamos enfrentar novamente o caminho, até que ninguém se sinta excluído do banquete.

A Missão

Da mesa, os discípulos passam à missão. Retomam o caminho de Jerusalém. Voltam para dizer aos outros o que viram, ouviram e sentiram. Jesus está vivo, é preciso anunciar a todos. Torna-se urgente espalhar a Boa Nova. O medo foi substituído pelo entusiasmo. A sensação de fracasso deu lugar a uma alegria profunda. A confiança baniu para sempre a insegurança. Um novo ardor toma conta de ambos – “não ardia o nosso coração enquanto Ele nos falava pelo caminho”! Depois que o outro é convidado à mesa e converte-se num irmão, o trabalho missionário ganha uma nova dimensão. 

Conforme os passos anteriores dessa pedagogia de Jesus, a resposta é sim! Partindo do caminho – passando pelo convite, pela casa, pela porta e pela mesa – retornamos outra vez ao caminho. Não mais caminho de fuga, medo, frustração e impotência, mas de missão. E esta última, agora com a presença viva do Ressuscitado, o Outro Absoluto, abre novas alternativas para o encontro com o outro, com o migrante, com o pobre, enfim, com o excluído. Os que vinham pelo caminho convertem-se, eles próprios, em mensageiros para todos os que se encontram a caminho – os povos da diáspora contemporânea: refugiados políticos e econômicos, migrantes temporários, indocumentados, prófugos, marinheiros, nômades – gente sem terra, sem pátria, sem emprego, sem destino e, muitas vezes, sem nome nem identidade. 

O encontro com o Cristo Ressuscitado abre os horizontes da missão. Dos caminhos de fuga, faz uma estrada de busca. Apesar do sofrimento, reacendem-se os sonhos e as esperanças. Na construção de uma sociedade recriada, descortina-se um novo tempo, uma civilização: sustentável, solidária, plural, ecumênica, democrática, justa e fraterna. O migrante – enquanto “outro, estranho e diferente” – representa um desafio para os dias de hoje. Ao mesmo tempo que nega os caminhos do modelo neoliberal excludente, afirma a necessidade de uma via alternativa, onde as relações econômicas e políticas estejam subordinadas aos valores da dignidade e dos direitos humanos, bem como do respeito à alteridade.

 

b). Lições do migrante

Se a Palavra de Deus traz luz para a espiritualidade do caminho, com igual razão o faz o próprio migrante. De fato, aquele que chega de fora e de longe sinaliza a oportunidade de que suas expressões e valores culturais revelem toda sua potencialidade. Cruzam-se e se fundem outras visões de mundo, plurais e distintas. As diferenças, longe de muros, podem erguer pontes de intercâmbio e de enriquecimento recíproco. O outro e diferente indica e pavimenta a via para o mistério do Transcendente. O próprio migrante nos ensina que toda caminhada, especialmente quando longa e fatídica, exige jogar fora o que pode fazer o barco afundar; só assim ele aprende a prosseguir com menor peso, maior leveza e redobrada rapidez

Em outras palavras, toda migração, sobretudo quando árdua e cheia de contratempos, ensina a depurar a mala e a alma de tudo o que é supérfluo; é preciso ater-se aos bens essenciais, focar o espírito no horizonte a ser alcançado. Tudo isso nos leva a perguntar se não estamos carregando algum fardo (riqueza, poder, honra, vaidade) que pode fazer nossa frágil embarcação afundar; e nos perguntamos, ao mesmo tempo, como livrar-nos dessa carga superficial, no sentido de atermo-nos apenas àquilo que é indispensável para chegar ao horizonte traçado; numa palavra, como se desfazer dos bens perecíveis para focar as energias em bens que possam permanecer eternos; como diz o Evangelho “não adianta acumular bens que os ladrões podem roubar e as traças corroer”, mas concentrar as forças naquilo que nos pode salvar. Entram em jogo também os valores culturais e religiosos de outros povos e culturas, bem como o conceito dom “bem viver” contra o individualismo exacerbado do “viver bem”.

Todo migrante é em geral uma fonte potencial de energia. Em tempos de sofrimento, crise, caos, catástrofe ou barbárie – o espírito costuma reavivar em cada família, povo nação, ou cultura as brasas que se encontram sob as cinzas. Pessoas e grupos descobrem então que dispõem de forças das quais sequer desconfiavam. O mal, o perigo, a ameaça e o desespero despertam energias ocultas e a bem dizer adormecidas. Submetido a uma série de obstáculos e adversidades, o migrante passa a utilizar todas as “ferramentas” de que pode dispor para superar esse momento difícil da existência. Nessa perspectiva, as sementes presentes nas entranhas mais profundas, mas ainda adormecidas, germinam como que misteriosamente. E ao fazê-lo, fecundam outras pessoas, grupos, culturas e civilizações. Poderosas nações, como os Estados Unidos e a Austrália, por exemplo, devem seu progresso e desenvolvimento, entre outros fatores, a uma história marcada pela abertura e acolhida de milhões de imigrantes.

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