[Pe. Alfredinho] Carta a 2021 de José Eduardo Agualusa
CARTA A 2021
Querido 2021, seja bem-vindo!
Entre, a casa é sua.
Se não for pedir demais, nos devolva, por favor, todos os abraços que seu prezado antecessor nos roubou. Queremos também as gargalhadas dos parentes e amigos, o livre sorriso dos desconhecidos, a brisa no rosto. Gostaríamos ainda de ter de volta a alegria das viagens; a tumultuosa euforia dos estádios e dos grandes shows; todas as tardes em que não fomos beber cerveja com os amigos no boteco da esquina.
Não se esqueça de nos devolver aqueles jantares intermináveis, em que discutíamos o fim do mundo e como iríamos recomeçá-lo. Hoje que sabemos muito mais sobre o fim do mundo, essas conversas antigas me parecem todas um tanto ou quanto
ingênuas. Contudo, mais do que antes, é importante conversar sobre recomeços. Trocar sonhos. Debater utopias.
Peço em particular que me devolva os festivais literários – dos quais, em 2019, eu estava até (confesso) um pouquinho enfastiado. Durante o seu reinado quero muito regressar a Paraty. Não posso perder a FliAraxá, a Flup ou a Flica, em Cachoeira.
Eu, que não sou de futebol nem de carnaval, agora sinto ânsias de me perder entre multidões, gritando, sambando, abraçando, me descobrindo nos outros. Quero dançar sem culpa. Quero poder voltar a abraçar meus velhos pais sem medo de os contaminar.
A maior invenção da Humanidade não foi a roda nem o fogo. Não foi o futebol, a feijoada, o samba, o xadrez, a literatura, sequer a internet. A maior invenção da Humanidade, querido 2021, foi o abraço. Olho para trás e vejo a primeira mãe, acolhendo nos braços o filho pequeno. O nosso pai primordial apertando contra o peito forte (e peludo) a mulher amada; dois amigos se consolando numa armadura de afeto.
Depois desses primeiros abraços, alguma coisa mudou para sempre. O mundo continuou perigoso, sim, o mundo está sempre perigoso, mas passamos a ter o conforto de um território inviolável. Foi o abraço que fundou a civilização.
Com elevada estima,
José Eduardo Agualusa (Jornal O Globo, capa, 31 de dezembro de 2020)
(Obs.: Agualusa é o premiado escritor angolano, colunista de O GLOBO)
Muito pertinente o comentário.Dá para refletir.