POR QUE “TREM DAS CEBS”?

Primeiramente, porque sua locomotiva é movida pela energia de dois motores potentes e interligados: de um lado, o contexto da realidade socioeconômica e político-cultural, de outro, a Palavra de Deus. O cotidiano da vida e a Bíblia se questionam, se interpenetram e se interpelam, enriquecendo de forma recíproca tanto os problemas da população mais pobre e necessitada quanto a leitura da Sagrada Escritura. De fato, enquanto esta última ilumina os desafios e alternativas da história, com vistas a mudanças urgentes e necessárias, o contexto social abre o leque para novas leituras dos textos bíblicos, ressignificando conceitos e práticas de ordem sociopastoral. Desse processo nasce o “círculo hermenêutico”: a luz da Palavra sobre a realidade produz um tipo de leitura que exige modificações estruturais, e estas, por sua vez, levam a uma nova interpretação do sentido de cada passagem bíblica, a qual torna a iluminar a situação transformada e requer o compromisso para com novas mudanças… e assim por diante! Desse modo, a fé ganha uma dimensão de prática social e política que vem desde a experiência fundante do Povo de Israel, isto é, a libertação do Egito narrada pelo Livro do Êxodo. E vem também da prática de Jesus e das primeiras comunidades cristãs.

Em segundo lugar, porque o trem é sinônimo de movimento. A vida de toda pessoa humana, a família ou a sociedade, mas em particular a vida das comunidades, está sempre em movimento. Este que permite avançar ou recuar, caminhar mais depressa ou mais devagar. A inércia não condiz com o vigor, sempre vivo e vital, da experiência humana e tampouco condiz com a vitalidade da biodiversidade (ou seja, vida em todas as suas formas). A trajetória sobre a face da terra representa uma travessia, e esta, ao mesmo tempo que revela os limites, impasses e obstáculos do caminho, às vezes entraves intransponíveis, revela igualmente as ocultas potencialidades a serem descortinadas. Daí a marcha contínua, a metáfora do movimento. Se ele faz parte de nossa trajetória pessoal, no âmbito das Comunidades Eclesiais de Base torna-se bem mais visível e relevante, uma vez que elas reúnem sonhos esperanças e lutas coletivas. O movimento do trem lembra que parte do trajeto já foi vencida, mas também que ainda há pela frente inúmeros desafios a vencer. Santo Agostinho diz que “o ser humano vem de Deus e atravessará a existência irrequieto até retornar a Deus”. O mesmo ocorre com as CEBs. Marcham irrequietas até repousar do Reino de Deus.

 

Depois, porque a composição comporta múltiplos e distintos vagões. As comunidades se juntam para formar o trem. Mas cada uma delas tem seu endereço próprio, suas problemáticas particulares e suas características diferenciadas. De igual forma que as pessoas, também as comunidades são únicas e irrepetíveis. A viagem de trem, feita em comum, serve justamente para o intercâmbio de ideias e de experiências, como também para pensar e refletir alternativas. Por trás dessa travessia periódica, reside a sabedoria de que juntos somos mais, melhores e mais fortes. Mantém-se viva e ativa a cultura do encontro, do diálogo e da busca. Não uma busca individualista e solitária, mas tentando somar saberes e sabores com outras forças da Igreja e da sociedade. Outra intuição sábia: nas relações humanas e sociais, em geral somar é também multiplicar. O acúmulo de experiências diversificadas, na medida em que eleva a quantidade das ações, a um certo momento representa um salto qualitativo para um amanhã recriado. Com efeito, o trabalho em rede multiplica a sensibilidade e a solidariedade de cada forma de energia.

Diminui o isolamento, diminuem as distâncias e diminui a indiferença. Nas insistentes palavras do Papa Francisco, “muros se abatem e pontes se levantam”. Desde um ponto de vista político-ideológico, vivemos atualmente um tempo de polarização exacerbada. Em lugar de comunidades, a tendência nos leva a formar guetos ou bolhas, nos quais se desenvolvem narrativas próprias e excludentes. Criam os “nossos”, os “de dentro”, de uma banda; de outra, “os outros” ou “os de fora”. Quem se encontra de um lado vê os demais como inimigos a serem combatidos, senão eliminados. A continuar assim, a Igreja (e a sociedade) pode se converter em um grande arquipélago de ilhas incomunicáveis. Efetivamente, o gueto ou a bolha se fecham em si mesmo, se isolam, levantam barreiras e tendem a engendrar hostilidades e conflitos, seja de dentro para fora quanto de fora para dentro. Por isso é que juntar os diversos vagões em uma única composição torna-se um “sinal dos tempos”, no sentido de “superar a globalização da indiferença pela cultura do encontro, do diálogo e da solidariedade”, repete o Papa Francisco.

Quarto, porque o trem realiza uma parada em cada estação. As estações podem ser vistas como as várias comunidades, paróquias e as dioceses nas quais participamos, mas também como as ruas e condomínios, os bairros e municípios, os lugares geográficos onde habita a população pobre, excluída e vulnerável. Ou então os porões, periferias e fronteiras de nossa sociedade assimétrica e desigual. Aqui vale destacar o respeito a cada agrupamento humano, seja ele no campo ou na cidade. Na zona rural e na zona urbana, cada povoado possui água e sede, para fazer uma referência ao encontro de Jesus com a Samaritana, à beira do poço (Jo 4,1-30). O quarto evangelista parece “jogar” com duas pessoas, dois tipos de sede e dois tipos de água. Quem no início da conversa possui o balde para tirar água, ao final acaba pedindo água; e inversamente, quem pede água no início, depois se dispõe a oferecer a água viva. Fica claro que ninguém é somente água ou somente sede; ninguém é água ou sede o tempo inteiro. Todos os seres humanos formam uma mistura de água e sede, ou seja, de luzes e sombras, limites e potencialidades, lacunas e bênçãos.

Somos tentados a dizer que, nesse episódio, não é tanto Jesus e tampouco a Samaritana que evangelizam. O grande evangelizador é o poço. Poço como sinônimo de encontro: nele água e sede se fundem, se revelam e se complementam. Em outras palavras, evangelizar é abrir poços e deixar que a água e a sede se busquem reciprocamente. Entre parêntesis, vale recordar que a maioria de poços/encontros que Jesus provoca são proibidos, alguns duplamente proibidos: com estrangeiros, com mulheres, com pecadores, com leprosos, com cobradores de impostos. Jesus rompe com as leis iníquas e excludentes para ir ao encontro da água e da sede de cada ser humano concreto. “O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado”. Tudo isto para não esquecer que cada rua, bairro, condomínio, cidade, povoado rural – enfim, cada grupo humano tem água e sede. A Boa Nova do Evangelho não “se leva” a lugar nenhum. Ela já se encontra no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura. Daí porque a evangelização, quando séria e verdadeira, tem mão dupla: quem pretende ser evangelizador, acaba sendo evangelizado; quem queremos evangelizar, já possuem as sementes e valores evangélicos. A Boa Nova nasce da abertura ao encontro e ao diálogo.

Que tem isso a ver com o trem das CEBs e com as estações? Em cada uma destas, o trem pode se converter em fermento na massa para aquele lugar; mas também pode colher as expressões culturais e religiosas que os habitantes podem oferecer. Olhando com atenção a prática de Jesus, mais do que semear o Evangelho, Ele vai colhendo a riqueza invisível de cada pessoa: “nunca encontrei tanta fé em Israel”! “Vai em paz, tua fé te salvou”. O Mestre é sem dúvida um semeador, mas não deixa de ser também um sábio capaz de ver o que está oculto aos olhos, e só pode ser visível com o olhar do coração. Por isso é que a caravana de Jesus nunca atropela um grito de socorro. Os discípulos até tentam desviá-Lo dos desvalidos importunos. Mas a caravana se detém: “Alguém me tocou”!

Por fim, mas não em último lugar, porque a viagem de trem oferece a oportunidade do toque: querendo ou não, todos os passageiros se acotovelam, tropeçam e se tocam. E aqui, uma vez mais, convém passar os olhos pelas páginas dos relatos evangélicos. Impressiona o número de vezes em que Jesus toca e se deixar tocar. Por quê? O toque talvez seja a linguagem muda de quem muito sofre ou muito ama. De fato, quem passou por experiências-limite da vida (morte, separação, fracasso, doença, amor incompreendido, etc.) aprende que, em determinadas ocasiões da travessia, só o toque nos cura e nos salva. Por toque, neste contexto, podemos entender uma série de gestos mudos, sim, mas por isso mesmo muito eloquentes: um olhar atento, um sorriso largo, uma palavra amiga, um “abraço nego”, uma visita ao doente, uma presença, uma disposição à escuta, uma mão estendida, um bom-dia, boa-tarde ou boa noite, um obrigado, um “como vai”?, um “por favor”, um “com licença”, um “buon pranzo” (bom almoço), para usar as palavras do Papa Francisco… Sem esquecer, claro, o toque literal no ombro ou nas costas: “força, levanta a cabeça e vamos adiante, você não está só”!

São gestos simples, não custam nada. Mas fazem uma diferença considerável, seja em que recebe quanto em quem oferece. Dizia o saudoso Dom Moacyr Grechi: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares não importantes, conquistam coisas extraordinárias”. Tais gestos se revestem da linguagem do carinho, da ternura, do cuidado, do amor – que vale tanto para nossas relações humanas quanto para as relações com as demais formas de vida, bem como para a relação com o planeta Terra, “nossa casa comum”. O ambiente das CEBs, em particular, e os encontros de CEBs em geral, consistem em momentos muito oportunos para essa comunicação não verbal. Aliás, como sabem os especialistas no assunto, a linguagem verbal representa uma parcela ínfima no vasto campo da comunicação humana. O corpo, a postura, a simpatia e a abertura ao outro falam bem mais alto do que as palavras.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 25/04/2024

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