SÍNDROME DA CASA GRANDE
Parafraseando a metáfora de Gilberto Freire, os moradores da Casa Grande sempre odiaram o pobre sem eira nem beira, o negro, o indígena, o migrante, o povo de rua, muitas vezes a mulher, enfim, aqueles(as) que, de alguma forma, lhes são diferentes, estranhos – “outros”. A Casa Grande mantêm um ódio figadal por tudo o que vem da ou cheira à Senzala.
Em tempos idos, quando o rádio surgiu como grande novidade, a Casa Grande escarnecia dos pobres e migrantes que, a partir da cidade, levavam um rádio para os parentes do interior. “Pobre metido a rico”, diziam com requintes de desprezo…
Depois, foram o fogão, a televisão e a geladeira que apareceram como objetos cobiçados. Novamente aqui, quando os pobres e migrantes enchiam os porta-malas dos ônibus da Itapemirim, São Geraldo ou Gontijo com essas novidades, a Casa Grande atiravam-lhes olhares oblíquos e com mal disfarçado desdém…
Mas esses olhares se encheram de veneno quando chegou a moda da TV a cores e sobretudo da antena parabólica. Pobres e migrantes faziam sacrifícios inauditos para presentear os pais e irmãos da roça com essas imagens coloridas. A Casa Grande comentava que a tal antena não se adaptava aos casebres miseráveis. Muitos destes sequer tinham estrutura para a novidade, sendo necessário construir um suporte adequado.
Não foi diferente com os casos da moto, do celular ou do computador… a Casa Grande sempre tinha o olhar atravessado quando pobres e migrantes “se metiam” a consumir coisas que “não lhes pertenciam”. Capazes de passar fome para comprar o que não podem, não sabem economizar para o futuro…
Pior ainda quando veio o carro e a possibilidade de viajar ao “norte”/nordeste de avião. Que é que essa gente está pensando? – se interrogavam com ironia. Em vez de comprar o necessário, ficam tentando imitar os ricos. Por que não se contentam com o que possuem? Como se somente os privilegiados da Casa Grande pudessem desfrutar da tecnologia e das novidades que ela colocava no mercado!…
É isso! Quem nasceu e cresceu na Casa Grande odeia ver pobres, negros, indígenas e migrantes nos aeroportos e aviões, nos shopping-centers e praias, nos hotéis e casas com algum tipo de luxo, nos colégios e hospitais particulares, nos carros de classe média e nos clubes… como se gritassem com raiva que “o lixo deve estar lixo”, deixando o luxo para quem o merece ou desde o berço o herdou…
O ódio chega ao limite, porém, quando um pobre nordestino, vindo lá do sertão de Pernambuco, passa a trabalhar como metalúrgico; mas, ao invés de se contentar com seu lugar, junto com outros companheiros toma o comando do sindicato, depois inventa de fundar o PT e, como se nada fosse, começa a disputar o cargo de Presidente da República. Tenta uma, duas, três vezes… Até que na quarta vez sobe vitoriosamente a rampa do Palácio do Planalto, morando no Palácio da Alvorada. Onde já se viu tamanha ousadia?!…
Mais grave ainda, consegue eleger a sua sucessora. Depois… Bem, depois as forças da Casa Grande, elite branca, se organizam, depõem a Presidente Dilma e levam à cadeia o tal “nordestino atrevido”, colocando-o, agora sim, “no seu devido lugar”…
Contudo, a teimosia e a resistência venceram o mal e o medo. Tendo deixado a prisão, o nordestino sem mestrado nem doutorado candidata-se novamente à Presidência da República e… Vence as eleições, apesar de todas as fraudes, armadilhas, dinheiro e truques das forças da Casa Grande. Não há perdão para um “pecado” dessa natureza, para tamanho atrevimento. Daí os dentes arreganhados, as unhas afiadas, os olhos ensaguentados de tantos tigres raivosos…
A Casa Grande, histórica e estruturalmente, jamais suportou que alguém da Senzala ousasse invadir seu território. Enquanto a Casa Grande é movida a benesses e privilégios, a Senzala é movida a favores. Ora, estes últimos são efêmeros, dependem do humor do senhor, ao passo que aqueles são intocáveis. Quando a Senzala tenta transformar os favores em direitos e em dignidade humana, os senhores da Casa Grande apelam para o chicote, o tronco, o capataz, o capitão do mato, a polícia ou e exército… Definitivamente, o esquema da Casa Grande & Senzala mostra-se, uma vez mais e sempre, incompatível com a democracia!
Alfredo J. Gonçalves
Brasília, 06/01/2023