Scalabrini, termômetro de uma época histórica
Durante a existência de J. B. Scalabrini (1839-1905), uma avalanche de europeus trocou o velho continente pelas terras novas das Américas. Com grande dose de razão, alguns historiadores se referem ao “século do movimento” (séc. XIX). O número dos que se viram forçads a cruzar os oceanos ultrapassa a cifra de 60 milhões de pessoas. Somente da Itália, onde Scalabrini exercerá seu ministério de sacerdote e de bispo (respectivamente, em Como e Piacenza), emigraram mais de duas dezenas de milhões de seres humanos, com ou sem a família. As causas desse êxodo em massa estão ligadas, entre outros fatores, às turbulências provocadas pela Revolução Insdustrial. Tamanho deslocamento de pessoas explicará porque Scalabrini será historicamente lembrado como “o pai e apóstolo dos migrantes”.
Não seria exagero afirmar que, ademais de bispo e pastor, Scalabrini se revelou como um grande profeta e protagonista do seu tempo. Seu conterrâneo Pe. Giovanni Semeria o haverá de definir como «um símbolo […] um daqueles homens que encarnam em si as aspirações mais profundas de um momento histórico». Enquanto profeta, denunciou com veemência os maus agentes da migração como “comerciantes de carne humana”. Ao mesmo tempo, porém, foi capaz de entrever nos fenômenos migratórios um sinal dos tempos, verdadeiro anúncio da Boa Nova do Evangelho, na exata medida em que podem contribuir pra o encontro, o diálogo, o enriquecimento de distintos povos e culturas. Longe de empobrecer, o confronto das diferenças representam uma forma de depuração de valores que conduz a um recíproco aprendizado. Os migrantes, sem deixar se ser vítimas, são também artífices de avanços civilizatórios.
Neste ponto, emerge a figura de Scalabrini como protagonista de tempos novos. No empenho com os migrantes e de dentro da própria Igreja, seus escritos e sua obra iluminam o cenário complexo dos desafios daquela época. De modo todo particular, põem em debate, ao lado de outras personalidade contemporâneas, a “questão social” e a “questão migratória”. Dele e dos chamados “santos sociais” do século XIX – fundadores e fundadoras de novas congregaçãoes de caráter apostólico – podemos afirmar sem erro que foram precursores remotos do Concílio Vaticano II. Ou seja, souberam abrir as portas da Igreja e as mentes da sociedade civil para os dramas que afligiam os direitos e a dignidade da pessoa humana do tempos modernos, em suas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (Gaudium et Spes, n. 1).
Os parágrafos anteriores nos convidam a revisitar a herança de Scalabrini como quem visita um tesouro ou um museu vivo, de forma particular nestas últimas décadas em que assistimos ao aumento dos deslocamentos humanos de massa e do número de pessoas neles envolvidas, tanto como migrantes quanto como refugiados. Duas intuições do pastor-profeta-protagonista, em especial, podem ser resgatadas como ferramentas de ação no universo da mobilidade humana. A primeira tem a ver com o acompanhamento dos migrantes e das migrações não somente de um ponto de vista religioso e pastoral, mas também na esfera social e política. O trinômio composto “socio-político-pastoral” jamais pide ser dissociado.
A segunda intuição tem a ver com o trabalho integrado entre a origem e o destino dos migrantes. Ademais de agir, na Itália, para minimizar o sofrimento dos que deixavam a terra que os vira nascer e embarcavam para o outro lado do oceano, providenciou para que na Américas, os missionários e missionárias pudessem acolher humanamente os que desembarcavam em solo estrangeiro. Essa ponte de fé e esperança entre os polos de saída e de chegada torna-se fundamental para os que, com as raízes ao sol, buscam novo enraizamento num chão mais fértil e promissor. Permanece o desafio de recriar para o contexto atual da migração as intuições de Scalabrini. Este, com um século de antecedência, colocou em prática a recomendação do Documento de Aparecida (2007) sobre “o diálogo e a cooperação” entre as Igrejas de saída e acolhida dos migrantes” (Dc. Apda. nn. 411-415).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 16/05/2022
Nós Migrantes não estamos sozinhos, já temos Nossa Senhora dos Migrantes e agora nosso Santo Cuidador dos Migrantes, Dom João Batista Scalabrini, rogai por nós.