UM OLHAR DA FRONTEIRA
– Me chame Andarilho ou Caminheiro. Nome e sobrenome me despojaram pelas curvas do caminho.
– De onde você vem? Qual sua trajetória?
– Já passei por muitos lugares, nem lembro. Bati os pés em muito chão. Conheço um bocado de países.
– Falo do pais de origem! Onde você nasceu e quantas fronteiras cruzou?
– Quatro, sete, dez… Sei lá! Nasci em outro continente, longe daqui. Quebrei a cara em muita porta
fechada. Até a coragem vem perdendo a gana e a força. Sofri rechaço até de gente como eu.
– Documentos, passaporte, dados pessoais?
– Tenho não, perdi! Sobrou a certidão de nascimento. Só sei que atravessei desertos, cruzei rios a nado,
abri vereda por florestas cerradas. Com a certidão, sou um cidadão do mundo, ou não!?
– Família, parentes, amigos conhecidos?
– Minha família é um vazio, uma ausência no coração. Perdi a mulher, companheira, logo na saída do nosso
país. O menino e a menina, esses eu perdi para o sol e a chuva, o vento e o frio, o cansaço e a fome.
Ficou a solidão e este buraco sem fundo no peito. Dele é que venho fugindo há tempo.
– O que você espera deste país? Ou pretende seguir viagem?
– Sei não! Já imaginei tantas coisas pelos lugares que passei, que até desisti de sonhar. Busco alguma coisa,
mas sei que em cada esquina me espreita um fracasso. Sonhos? O vento traz, o vento varre. Seguir, ficar,
qual a diferença? Lutei, plantei e nada colhi. O que me espera? Sorrisos, preconceito, só Deus sabe?
– E nos outros países, por onde você andou?
– Minha memória anda meio curta e enferrujada. Parece que só guarda dores e males. Trago feridas e
sofrimento por todo o corpo, mas as lembranças são tristes e amargas. Tenho o coração e a alma
calejados. Aprendi a esperar pelo pior, o que vem, por pouco que seja, já é lucro.
– Tem contato com a família e o país de origem?
– Minha família são minhas ilusões e desilusões. Nesse nevoeiro caminho meio às escuras. Sim, escrevi duas
ou três cartas. Mas como esperar resposta com tantas andanças. Quem morreu quem está vivo? Não sei!
O destino cortou todos os fios que ligavam nossas relações. Me vejo órfão, meio nu e com as raízes ao sol.
– E trabalho, emprego, procurou em algum lugar?
– Para forasteiro, trabalho não existe; nem emprego. O que existem são serviços sujos, pesados, perigosos
e sempre mal pagos. Coisa de um dia, uma semana, um mês!… Raramente mais do que isso! Emprego
fixo, estável, com carteira em ordem!… Nem pensar! Patrão nenhum quer saber de trabalhador que vem
de fora, só se for para coisa provisória, temporária!… Ou esse negócio de trabalho clandestino.
– E a língua local, você conseguiu aprender?
– Como pode ver, arranho algumas palavras e frases. Mas isso não serve para o tal mercado de trabalho.
Frequentei um bocado de escolinhas, mas sabe como é, a cabeça anda perturbada, e cada país é diferente!
– Por que deixou sua terra natal?
– Tudo se mistura nessa resposta!… Tem sonho de vida nova, claro, mas não falta coisa ruim: seca e inundação, pobreza e fome, violência e morte. Jovem quer sempre coisa melhor, vem no sangue.
– E aqui neste país, o que pensa fazer?
– Por todo lugar é a mesma coisa. A gente tem fé e esperança, mas elas vão escapando por entre os dedos, como areia fina. Já faz tempo que meus companheiros são cacos de sonhos e fantasmas de pesadelos.
– Valor em dinheiro, traz alguma quantia?
– Tomara! O caminho está cheio de coiotes, como dizem. Cada etapa tem seu preço e não faltam os abutres para lembrar. O que tenho são uns trocados para conhecer os arredores.
– Suas coisas, malas, sua bagagem?
– Pobre não tem bagagem, tem pertences. Cabe tudo nesta mochila. Pelo menos isso aprendi pelo caminho: jamais carregar o que não vai precisar. A estrada é longa e as coisas dobram de peso a cada passo. Levo só o que é necessário. O resto, bem, o resto é resto. Este encontro acrescento na mochila como estímulo para mais um passo, “um, por menor que seja”.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 28/03/2025