DAS COISAS MATERIAIS E ESPIRITUAIS

Uma vez que estamos na Quaresma, tempo litúrgico de penitência e preparação para o Mistério Pascal, dias atrás dediquei-me, pacientemente e por alguns minutos, a assistir e ouvir pela TV, a homilia de um desses sacerdotes chamados midiáticos ou “influenciadores”. Discorrendo sobre a enfermidade de Jorge Mario Bergoglio e na aparência condoído por sua saúde precária, não deixou de fustigá-lo sub-repticiamente como homem despreparado para governar a Igreja, insinuando falsidade e apelando até mesmo para a imagem do Anticristo. Depois, do alto de sua autoridade sacerdotal, dirigiu críticas ao Concílio Vaticano II, evento que, segundo ele, arruinou e desfez os fundamentos de séculos da doutrina cristã e católica. Por fim, fez questão de repetir algo que parecia figurar como refrão em sua catequese midiática: que a “verdadeira evangelização” deve preocupar-se de coisas espirituais e não de coisas materiais. Bem, vamos por partes.

Então o atual Santo Padre não seria o verdadeiro sucessor à cátedra de Pedro!? Muita pretensão a desse padre em achar que o sopro do Espírito Santo tenha preferência por um único representante do clero, que fala por conta e risco próprios, deixando cegos e surdos os cardeais reunidos no Vaticano, chamados em conclave justamente para escolher o sucessor de Pedro! Que discurso é esse? Intuição ou manipulação do espírito e da fé popular para semear discórdia e desacreditar as palavras e escritos do pontífice!? Pior ainda, não será em vista de multiplicar o número de seguidores ou “influenciados”! Entre a humildade e simplicidade do Papa Francisco, eleito e nomeado numa cerimônia milenar, por um lado, e o sacerdote que se diz iluminado, por outro, teria o Espírito Santo optado por este último!

Quanto à desqualificação do Concílio Vaticano II como lugar e evento teológico por excelência, a arrogância e prepotência se tornam bem mais graves. O dito Concílio foi conclamado pelo então Papa São João XXIII, que teve a coragem de abrir as janelas do Vaticano para que a realidade e os desafios dos “tempos modernos” pudessem arejar a ação da Igreja. O evento estendeu-se de 1962 a 1965, num empenho concentrado dos pastores da Igreja, para renovar a linguagem e os métodos de transmitir a Boa Nova do Evangelho, sempre com fidelidade criativa diante da prática de Jesus e do testemunho das primeiras comunidades cristãs. De novo, teria o vento do Espírito Santo deixado no deserto estéril tais pastores, durante três longos anos de trabalho, para vir iluminar um único sacerdote mediático!? Ou este último não estaria antes deslumbrado com os holofotes, as câmaras e os microfones do palco televisivo!? Será de descartar o cenário profusamente iluminado, com a massa de seus telespectadores e os afagos dos patrocinadores!? No fundo, a “Sociedade do Espetáculo” (Guy Debord) se sobrepõe à pobreza e sobriedade do Evangelho.

E que dizer dessa fronteira que delimita taxativamente o que é espiritual daquilo que seria coisa material! A água transformada em vinha, nas bodas de Caná, primeiro sinal do quarto evangelista, é coisa material ou espiritual? O pão multiplicado e distribuído à população faminta, é coisa material ou espiritual? O pão e o vinho da última ceia, são coisas materiais ou espirituais? O tema dos trabalhadores da vinha, contratados a diversas horas do dia, é coisa material ou espiritual? Essa distinção é falsa, de acordo com a relevância que a existência confere às diferentes posições socioeconômicas e político-culturais. Quem pode se dar ao luxo de concentrar-se única e exclusivamente nas chamadas “coisas espirituais”? Apenas quem tem a vida material solidamente assegurada. Para o pobre, o migrante, o excluído e todas as pessoas vulnerareis, impossível rezar sem pensar no preço do aluguel e taxas de impostos, nas contas de água e luz, no botijão de gás prestes a terminar, no aumento do pão e leite, do arroz e feijão, da passagem de ônibus e metrô, das frutas e legumes, da carne e do ovo, do material escolar – o que significa pensar em trabalho, emprego e salário.

Lê-se com ênfase que o “clamor dos escravos na terra do Egito” chegou até o Senhor. “Eu vi… eu ouvi… eu conheço… eu desci… eu te envio” (Ex 3, 7-10). Cinco verbos na primeira pessoa do singular atribuídos a Iahweh. Os primeiros três – ver, ouvir e conhecer – revelam a experiência fundante, espiritual e teológica, de um Deus atento, sensível e solidário com a situação concreta de seu povo oprimido. Dessa experiência, ao mesmo tempo material e espiritual, nasce e se consolida o Povo de Israel. Os outros dois verbos – descer e enviar – denotam a ação de Deus na história através da liderança de Moisés. Não basta tomar conhecimento da realidade, é necessário pôr-se a caminho. Material e espiritual são indissociáveis. Só os separam mesmo as sutilezas de uma Igreja indiferente ao sofrimento dos aflitos e atribulados.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 14/03/2025

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