SILÊNCIO E PALAVRA

Da mesma forma que a escuridão da noite engendra a aurora e que a umidade da terra amadurece a semente, o silêncio forja a Palavra. Não as palavras (no plural e com letra minúscula), mas a Palavra (no singular e com letra maiúscula). Palavra viva, livre e verdadeira; Palavra que cura, cuida e conforta; Palavra que nutre, faz crescer e enriquece; Palavra que liberta, abre horizontes e salva.

Semelhante Palavra, diferentemente da tagarelice, nasce, cresce e se robustece no terreno do silêncio. Só este é capaz de produzir a Palavra da Boa Nova. Demonstra-o a “escola de Nazaré”, escola do silêncio. Os relatos evangélicos não colocam uma única palavra na boca de José. Dizem apenas que era um “homem justo”. Mas, além disso, era o homem certo, no lugar certo, na hora certa, para fazer a coisa certa, isto é, defender e proteger o Menino, Maria sua mãe, a família e o projeto salvífico de Deus.

De Maria, diz o evangelista Lucas, por duas vezes, que ela “guardava e meditava sobre essas coisas em seu coração” (Lc 2, 19.51). Que quer dizer “guardar e meditar”? Significa contemplar a história, pessoal, coletiva ou mundial, com o olhar da fé. Não bastam os fatos sociológicos para explicar a trajetória humana. Esta encontra-se revestida de um sentido mais profundo. A fé funde acontecimento e significado. Por trás dos eventos, a “mão invisível” de Deus (e não de Abraham Smith) tece a história da salvação.

Quanto a Jesus, a bem dizer, passa trinta anos em silêncio antes de vir a público afirmar que “o tempo se cumpriu, o reino de Deus está próximo, convertei-vos” (Mt 4, 17). Não um silêncio inerte, passivo e indiferente, e sim um silêncio ativo. Silêncio de escuta e aprendizado, na intimidade do Pai. Como um discípulo que, antes de se tornar missionário, frequenta a escola de Nazaré. Não seria essa, aliás, a função primordial do tempo comum no calendário litúrgico?

Silêncio fecundo, revestido pela Palavra, onde o deserto floresce, e as trevas  vão acendendo luzes que iluminam as sombras. Tal como a terra guarda a semente, o silêncio guarda a Palavra, lapida-a, para que possa se tornar límpida e transparente. Disso decorre que a fonte e mãe da Palavra inovadora é o silêncio. Na fonte, a água é mais fresca e genuína. Se é verdade que as pequenas coisas revelam a grandeza da semente, também é certo que no silêncio e nos subterrâneos da sociedade se aninham as mudanças. Seja de que tamanho for, a semente hospeda o potencial de uma nova vida. O mesmo ocorre com o silêncio: nele se movem os fios invisíveis das transformações mais radicais.

O silêncio é como o útero onde se gesta a Palavra viva, o berço onde ela emite os primeiros sons, a oficina onde ela se forja como ferramenta de ação. Quem não é capaz de silenciar e ouvir, tampouco terá algo de novo a dizer. Repetirá a si mesmo ou aos outros. Como diz o ditado “quem não reflete se repete”. Não faltam papagaios por toda parte. Proliferam crise, caos, medo, dúvida, tormenta, inquietude, perguntas – tempo de escutar a voz da terra úmida de lágrimas, suor e sangue, como também a voz daqueles que pisam o solo com muita dor e muita teimosia. Quais seus sonhos e esperanças? Quais suas lutas e fracassos. Quais as chagas, as ruínas e as cinzas que os fazem sofrer? Como está a sua longa e árdua travessia? A Palavra de Deus vem sempre vestida de silêncio, mas este  mantém-se grávido de sinais antecipatórios. Luzes e sombras costumam andar de mãos dadas. Não, definitivamente não é tempo de colher, de responder, de oferecer verdades prontas. É tempo de busca e de preparar o terreno para a semeadura. Outros haverão de fazer a colheita.

O dia se engendra da noite; a árvore, da semente; o oásis, em meio ao deserto; a Palavra, no silêncio. Mas antes de crescer para cima, de buscar o céu azul, o ar livre e os raios do sol, devem mergulhar as raízes na terra úmida da história. Antes do tronco, folhas, flores e frutos, devem fortalecer as raízes. De fato, a flor, a espiga e o edifício somente poderão subir depois de aprofundar e firmar no solo seus alicerces sólidos.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM, RS, 26/01/2025

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