Crianças decapitadas, um milhão de pessoas com fome. A crise no norte de Moçambique

A ONG Save the Children destaca que na crise humana e de segurança as crianças são alvo dos insurgentes e enfrentam, como o resto da população e dos deslocados, fome severa. Presidente Nyusi quer eliminar o terrorismo.

Em outubro de 2020, esta família perdeu o filho mais velho, com 12 anos, decapitado pelos terroristas. © Rui Mutemba/Save the Children

Com os jornalistas impedidos de se deslocarem a Cabo Delgado, são as organizações não governamentais e a Igreja Católica quem tem reportado sobre aquela província moçambicana em crise humana e de segurança há três anos e meio. O mais recente relato é da Save the Children, que ouviu o testemunho de mães que perderam filhos para a violência e o ódio religioso. “Os relatos de ataques a crianças perturbam-nos até ao âmago. O nosso pessoal tem sido levado às lágrimas ao ouvir as histórias de sofrimento contadas pelas mães nos campos de deslocados. Esta violência tem de acabar, e as famílias deslocadas precisam de ser apoiadas à medida que encontram o seu rumo e recuperam do trauma”, comentou o diretor da Save the Children para Moçambique, Chance Briggs. No mesmo dia, o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, pediu ao novo chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) para erradicar o terrorismo do país.

“Naquela noite, a nossa aldeia foi atacada e as casas foram queimadas. Quando tudo começou, eu estava em casa com os meus quatro filhos. Tentámos fugir para a floresta, mas eles levaram o meu filho mais velho e decapitaram-no. Não podíamos fazer nada senão também seríamos mortos, contou uma mãe de 28 anos sobre o filho de 12 anos.

A organização não governamental, que iniciou a atividade em Cabo Delgado na ressaca do furacão Kenneth em 2019, mantendo 45 funcionários e 40 voluntários no terreno, encontrou esta família de agricultores num campo de deslocados a 200 quilómetros da sua aldeia, com as três crianças traumatizadas e uma delas a necessitar de cuidados médicos.

Infelizmente, não são caso único. Outra mãe de 29 anos também perdeu uma criança. “Depois de o meu filho de 11 anos ter sido morto, compreendemos que já não era seguro ficar na minha aldeia. Fugimos para a casa do meu pai noutra aldeia, mas alguns dias depois os ataques também começaram lá. Eu, o meu pai e as [três] crianças passámos cinco dias a comer bananas verdes e a beber água de bananeira até conseguirmos o transporte que nos trouxe até aqui”, relatou esta mãe que se diz de coração partido porque não pôde despedir-se nem dar um enterro adequado ao filho. São testemunhos de um conflito que já provocou mais de 1200 mortos e 670 mil deslocados perante a incapacidade do governo central.

Além disso, lamenta a Save the Children, há quase um milhão de pessoas a “enfrentar fome severa”, sendo certo que o trabalho da ONG acode 70 mil pessoas. A carência alimentar chega a Nampula, que também recebeu deslocados. Conta O País que nalgumas comunidades do distrito de Monapo há quem recorra a ervas para enganar a fome.

Os Estados Unidos iniciaram um programa de formação militar de combate ao ISIS-Moçambique. A União Europeia ainda não avançou.

A mais de 1500 quilómetros de distância, o presidente de Moçambique procedeu a mudanças na hierarquia das Forças Armadas. Na terça-feira, ao seu ex-chefe da Casa Militar, Rivas Mangrasse, promovido a CEMGFA, Filipe Nyusi pediu o fim do terrorismo e dos “seus mentores, que não devem ter sossego e devem se arrepender de ter ousado atacar Moçambique”.

Na véspera, a embaixada norte-americana em Maputo anunciou que tinha dado início a um programa de dois meses de formação de forças especiais para reforçar a capacidade de resposta do exército ao grupo que, dias antes, foi oficialmente designado como terrorista pelos EUA. Colocar o ISIS-Moçambique na lista negra de Washington dificultará os apoios financeiros aos insurgentes.

Do lado europeu, o pedido de apoio foi recebido em setembro e a resposta foi positiva, com Portugal a voluntariar-se para ajudar na formação, mas até ao momento não se materializou, segundo o eurodeputado Carlos Zorrinho, porque há “quem esteja no terreno que não quer que essa ajuda se faça”.

É na província de Cabo Delgado que está previsto o maior investimento privado em África, através da exploração do gás natural, numa infraestrutura que deverá estar pronta em 2024 e será explorada por um consórcio de empresas de vários países, liderado pela francesa Total. A insurreição representa uma ameaça direta aos projetos de gás, tendo um ataque em 30 de dezembro decorrido a apenas 10 quilómetros da infraestrutura, que recorre a empresas de segurança privadas para proteger o pessoal.

Por outro lado, a esperança de que o projeto trouxesse benefícios para a população perdeu-se entre o sentimento de abandono, a marginalização económica, os desastres naturais e o terrorismo. Daí que uma resposta exclusivamente militar, avisam os peritos, seja insuficiente ou mesmo contraproducente. O exército moçambicano, subdimensionado e mal equipado, recorreu a mercenários estrangeiros, primeiro em 2019 através do grupo russo Wagner – que se terá retirado após o falhanço no terreno – e depois com os sul-africanos da Dyck.

Associações como a Amnistia Internacional criticam esta abordagem porque a população tem sido vítima de abusos de todos os lados, levando à sua alienação. “A aposta para travar este conflito não deve ser apenas no campo militar. Deve ser uma estratégia multifacetada que garanta o desenvolvimento local, evitando que mais jovens das comunidades afetadas se juntem aos grupos armados”, disse à Lusa o diretor da ONG Centro de Integridade Pública, Edson Cortez.

Neste contexto, ganham mais relevância as conclusões de um estudo sobre captação de jovens para o extremismo. Segundo uma análise do Instituto de Estudos Sociais e Económicos, as províncias de Nampula e Niassa também são campos de recrutamento para os grupos armados que atacam Cabo Delgado.

Três anos e meio de violência

1983

O presidente Samora Machel autoriza o Conselho Islâmico a enviar jovens para estudar na Arábia Saudita, numa iniciativa financiada pelo reino saudita. Parte deles regressam radicalizados e vão para Cabo Delgado e Niassa pregar um islão salafista.

2010

A população subleva-se contra os clérigos que propõem uma visão extremista do Alcorão e queima uma das seis mesquitas com este tipo de mensagens em Cabo Delgado.

Outubro de 2017

Ataque a esquadras da polícia em Mocímboa da Praia marca o início das atividades terroristas do grupo localmente conhecido como Al-Shabab, referência ao fundamentalistas somalis.

Novembro de 2017

O grupo terrorista alarga os ataques às aldeias e às igrejas, queimando ou decapitando as vítimas.

Maio de 2018

Primeira notícia de decapitação de crianças num ataque dos terroristas à aldeia de Monjane, distrito de Palma, que se saldou em dez mortos.

Junho de 2019

Estado Islâmico declara grupo Ansar Al-Sunna seu afiliado após um ataque ao exército moçambicano. Grupo reforça-se com ruandeses e ugandeses em fuga da RD Congo, e mais tarde enfrenta o grupo privado russo Wagner, que acabará por se retirar.

Setembro de 2020

Mocímboa da Praia volta para as mãos do exército, depois de ter sido tomada três vezes desde janeiro. No mesmo dia Maputo pede ajuda à UE.

Março de 2021

O exército norte-americano inicia um programa de dois meses de formação dos fuzileiros moçambicanos e designa oficialmente o ISIS-Moçambique como organização terrorista, culpando-o da morte de 1200 pessoas.

cesar.avo@dn.pt

Notícia completa em: https://www.dn.pt/internacional/criancas-decapitadas-um-milhao-de-pessoas-com-fome-a-crise-no-norte-de-mocambique-13466143.html

 

One thought on “Crianças decapitadas, um milhão de pessoas com fome. A crise no norte de Moçambique

  • dezembro 4, 2021 em 12:49 am
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