A DUPLA FACE DO SILÊNCIO
De um lado, existe o silêncio fecundo da profunda escuta. Silêncio povoado pela presença de Deus, de anjos e de sonhos. É o silêncio que, do tesouro da memória, recolhe as mais belas pérolas e põe-se a contemplar o seu brilho. Diante desse rico baú, pode passar horas e horas a rever rostos, nomes, traços, histórias, relações, amizades, fotos, experiências!… Silêncio capaz de fazer, desfazer e refazer o rico tecido da vida pessoal ou familiar, comunitária ou sociocultural.
Silêncio vivo e dinâmico, o qual, a cada passo, desvenda novos horizontes do passado. Sim, o passado não é estático e terminado como pode pensar o senso comum. Ao contrário, ele possui a capacidade de mudar de acordo com os sonhos, esperanças e anseios do presente. Reviver e meditar sobre o passado é sempre uma maneira de redescobrir novos enfoques, novas lições e novas formas de avaliar os momentos críticos ou prazeirosos da existência. O tempo vivido, tal como o povir, também nos surpreende com suas novidades. Refletir é a melhor forma de não se repetir.
De outro lado, existe o silêncio estéril, desértico e negativamente solitário. Aqui predomina a recusa de relações, de intercâmbio, de comunicação. Em lugar da solidão fértil e produtiva de ressegnificar as coisas e relações, o que prevalece é o isolamento. A pessoa se fecha no seu casulo, cerrada para qualquer tipo de contato. Ao invés de grupos e comunidades, formam-se guetos, bolhas e seitas, onde uma linguagem hermética cria muros e destrói possíveis pontes. Não como enriquecer-se com os erros e acertos dos demais.
Silêncio tóxico e cheio de veneno. Fácil de ser identificado: “Ah, não falo mais com você!” Mesmo sob o mesmo teto ou no interior de famílias e comunidades, as pessoas tropeçam umas nas outras, mas se recusam a falar. Ou comunicam-se através de bilhetinhos, olhares oblíquos e intermediários. E quando o fazem, predominam os gestos e monossílabos. Apenas aquilo que é absolutamente indispensável à “convivência” cotidiana.
Nem precisa dizer que, em tais casos, o ambiente se torna pesado, carregado, irrespirável. Mais que de silêncio, podemos então falar de mutismo duro e despovoado. Vivendo ou trabalhando juntas, as pessoas insistem em criar barreiras incomunicáveis entre si. Um exemplo emblemático poderia ser trazido pelos vizinhos de apartamentos e condomínios: sequer se preocupam em saber o nome de quem mora ao lado, parede-meia. Prefere o total desconhecimento e, claro, o isolamento. Cada qual dentro de seu mundo, por mais estreito que seja.
Conclui-se que o silêncio e a solidão, ao mesmo tempo que são uma fonte perene e inesgotável de boas lembranças, e portanto, uma benção, também tendem a ser uma maneira de fugir a toda e qualquer forma de comunicação. Silêncio e solidão, combinados, costumam fortalecer os sábios; simultaneamente porém, isolam e empobrecem os medíocres. Os primeiros saem mais ricos dessa bela e profunda experiência, os segundos nutrem sua natureza rude, hostil e sectária. Enquanto para uns é oportunidade de encontro e reencontro consigo mesmos, para outros serve para reforçar ódios, rancores e ataques a quem não pertence ao gueto, à bolha ou à seita.
Por uma parte, silêncio que revela reflexão, oração, meditação, contemplação, vida esperitual e mística; uma forma de enriquecer e ressegnificar os fatos da existência. Descobrir e redescobrir as infinitas potencialidades do tornar-se pessoa. Por outra parte, o mtismo fechado e isolado, toxicamente envenenado,
que tende a embrutecer-nos, a voltar ao estado selvagem, a ouvir tão somente os interesses, desejos, paixões e instintos pessoais; cada vez mais ensimesmado sobre o próprio umbigo.
alfredo, sp, 11/02/2023