Contexto das migrações contemporâneas: alguns aspectos fundamentais

Quatro aspectos fundamentais marcam as migrações contemporâneas, quando comparadas ao que ocorria no início dos tempos modernos. A comparação exige, pois, um rápido olhar atrás. No fenômeno migratório do século XIX, entrando pelas primeiras décadas do XX, no contexto da Revolução Industrial, os migrantes tinham origem e destino relativamente pré-determinados. Deixaram a terra onde haviam enterrado seus antepassados, mas sabiam mais ou menos em que porto desembarcariam. Ao desenraizamento nos países do velho continente europeu, seguia-se um novo enraizamento do outro lado do oceano Atlântico. Partida e acolhida, digamos assim, tinham hora marcada. No embarque e desembarque havia agentes migratórios, por vezes até mesmo representantes dos governos de um lado e outro. O ato de deixar a pátria e atravessar as águas do mar adquiria, em não poucos casos, o caráter de uma espécie de “transplante”. Povos, pessoas e grupos eram como que transplantados.

Nas últimas décadas do século XX e primeiras do XXI, cem anos depois daquelas “migrações históricas”, mas diferentemente delas, os deslocamentos humanos de massa não ligam mais dois polos de uma travessia. Pelo contrário, os migrantes atuais sabem evidentemente de onde saem, mas ignoram onde irão fixar nova morada. O horizonte se lhes tornou nebuloso, sem contornos definidos. Em lugar de um “transplante” de um lugar a outro, amargam um vaivém sem fim, cruzando fronteira sobre fronteira, batendo de porta em porta, mas a incerteza predomina onde quer que cheguem. Erram pelas estradas com as raízes expostas ao sol, com o sério risco de definhar, secar e perecer. O desenraizamento não vislumbra facilmente onde replantar os sonhos e esperanças interrompidos. Bastaria constatar, como exemplos dos movimentos mais recentes, as rotas tortuosas e às vezes repetidas dos haitianos, dos afegãos, dos venezuelanos, e agora dos ucranianos, sem esquecer as “aventuras” dos migrantes que procedem dos países da África subsaariana. Esse vaivém sem tréguas, incerto e inseguro de onde desembarcar definitivamente, constitui o primeiro aspecto das migrações contemporâneas.

O segundo aspecto tem a ver com a questão do trabalho ou emprego. Sempre tendo em vista os deslocamentos do passado, o binômio migração-trabalho caminhava de maneira praticamente inseparável, como vemos no povoamento dos países novos das Américas, bem como em outros movimentos migratórios por toda parte. Tomando o caso do Brasil, por exemplo, para além dos imigrantes portugueses, italianos, alemães, poloneses, japoneses, etc. que aqui se instalaram, basta pensar no imenso número de migrantes internos que nas décadas de 1940-70 trocaram o Nordeste pelo Sudeste ou pelo Centro-oeste. Em São Paulo, Rio de Janeiro ou na construção de Brasília, a nova capital, com frequência, havia alguém de referência e um posto de trabalho à espera. Emprego razoavelmente estável e com carteira assinada. A mão-de-obra costumava ser absorvida pelo modelo político e econômico do desenvolvimentismo. O “conhecimento” de algum familiar, parente ou amigo que migrara anteriormente abria o caminho e as portas para novas aventuras, em boa medida bem-sucedidas.

Nos movimentos migratórios de hoje, internos ou internacionais, esse casamento entre migração e trabalho sofre um divórcio. Em vez de um trabalho mais ou menos garantido, o migrante vai se deparar com as migalhas que caem da mesa do capital. Acabam tropeçando com os serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. Migrar e encontrar emprego regular, relativamente legalizado, se dissociam. Salvo em raras e cada vez mais exigentes exceções, os migrantes terminam no mercado informal, quando não recrutados impiedosamente para o crime organizado, para a prostituição precoce, para o tráfico de drogas ou para o trabalho escravo. Cem ou cinquenta anos atrás, a mobilidade humana podia ser considerada como um meio para a mobilidade social ascendente. Migrava-se na tentativa de encontrar um lugar ao sol, coisa que efetivamente ocorria com boa frequência. Atualmente, é muito comum o deslocamento levar aos becos sem saída da “clandestinidade”, ou do trabalho autônomo e ambulante – que não é senão uma forma de auto exploração – numa mobilidade social descendente.

O terceiro aspecto refere-se à migração temporária e/ou sazonal, normalmente utilizada para as colheitas agrícolas, grandes obras públicas, trabalho doméstico, etc. Décadas atrás, bastava uma temporada no corte da cana-de-açúcar ou, por exemplo, para que o trabalhador conseguisse ganhar o suficiente para sustentar a família no restante do ano. Alguns meses fora de casa e longe dos parentes, e os ganhos, ainda parcos e pingados, iam garantindo a permanência no lugar de origem. De acordo com determinados estudiosos, trata-se de uma verdadeira migração de resistência. Migrar temporariamente é uma forma de evitar fazê-lo de forma definitiva. O dinheiro da safra cobria o que o roçado não fornecia.

Atualmente isso se tornou praticamente impossível. Não basta mais uma única safra. Desde algumas décadas, muitos migrantes, depois do corte da cana, passaram à colheita da laranja; outros juntam a colheita do café, com a do morango; e outros ainda, como no caso dos peruanos e bolivianos no Chile, casam a safra do tomate com a da oliva, e assim por diante. Voltando ao Brasil, não poucos trabalhadores e trabalhadoras sazonais, após qualquer tipo de safra agrícola, deslocam-se para o litoral ou para as ruas de grandes cidades, onde trabalham como vendedores ambulantes ou camelôs. Isso significa permanecer longe da família não somente por 5, 6 ou 7 meses, mas quase todo o ano, se quiser dar conta dos gastos para se manter ligado à terra. Outra alternativa para compensar os ganhos menores é a ausência temporária de mais de um membro da mesma família. Em semelhantes circunstâncias adversas, a tendência é que, de temporada em temporada, a migração sazonal se converta em migração definitiva para as capitais ou cidades médias, na tentativa se sobreviver nos porões ou periferias mais distantes.

Por fim, mas não em último lugar, o quarto aspecto destaca o protagonismo atual da mulher no processo migratório. Nas antigas migrações, a mulher vinha acompanhada do marido, do pai ou dos irmãos. O homem decidia e tomava a frente, a mulher o seguia juntamente com os filhos. As fotografias em preto-e-branco nos embarques do passado mostram bem isso. Às mulheres compete normalmente olhar pelas crianças, transportar algumas sacolas e pertences menores, enquanto o homem aparece com as malas pesadas e à cabeça do “cortejo”. Mulheres e crianças figuram como uma espécie de sombra dos homens. Estes últimos é que se responsabilizam pelo empreendimento da mudança e da travessia. Por vezes partia primeiro o homem – marido ou filho mais velho – como para sondar o terreno estranho e desconhecido, para só então chamar o restante da família, que novamente se reagrupava.

Nos tempos que correm, torna-se cada vez mais comum ver a mulher tomar a iniciativa de sair, seja na busca de uma carreira profissional mais promissora para si mesma em outra região ou país, seja, como mãe, na tentativa de garantir o futuro menos ingrato para aos filhos. Estudiosos constatam o crescimento das mulheres não apenas nas estatísticas referentes às migrações, mas também e sobretudo no seu protagonismo enquanto toma sobre si o processo de mudança. Não são poucas as mães solteiras, por vezes abandonadas pelos maridos nas crises mais agudas, que acabam se arriscando à migração. A Venezuela e o Haiti, entre outros países, podem ser bons exemplos desse fenômeno, em que se torna cada vez mais numerosa a presença da mulher (e dos menores desacompanhados) no processo migratório. Presença não como “apêndice” do marido, e sim como iniciativa por sua conta e risco próprios. “Troquei de pátria por amor aos meus filhos” – dizia uma venezuelana num testemunho comovente. O esforço para conseguir a ração diária do alimento familiar tornara-se cada vez mais penoso e humilhante. Ao mesmo tempo que os produtos diminuíam, o preço aumentava. Até que, diante das crianças famintas, a decisão se impôs: trocar a Venezuela pelo Brasil.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, coletivo de formação do SPM

Luziânia-GO, 13 a 15 de maio de 2022

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