[Pe. Alfredinho] Migrantes: excluídos ou “perversamente incluídos

Dois livros, dois autores, dois testemunhos vívidos, com a diferença de quase um século entre ambos. Fotografam, um e outro, o drama de gente em saída. Se as árvores ao serem cortadas, deixam escapar o sangue da seiva que lhes corre nas veias, as pessoas sangram suor e lágrimas. A dor da separação expõe as raízes ao sol ardente. Multidões expulsas do país em que nasceram, brutalmente desligadas de familiares, parentes e amigos. Migrantes que, aos milhares e milhões, partem de suas terras em busca de um solo menos árido e menos hostil, mais acolhedor e de horizontes mais largos. O sonho de um lugar que possa ser chamado de pátria. O primeiro livro vem da América Central e dos mares do Caribe. Nesse istmo, o vencedor do prêmio Nobel da literatura conferido em 1967, com a trilogia Viento fuerte, El papa verde e Los ojos de los enterrados, denuncia o império da United Fruit Company, com sede em Chicago (USA). Aos nativos indígenas, desenraizados, restava a exploração, a morte ou a fuga.

A fuga vem desenhada pelo autor no seguinte retrato: “Queimavam-lhes os pés convertidos em torrões. Pedaços de terra que partem. Pés nus. Intermináveis filas. Pés de camponeses arrancados de suas plantações. Imagem da terra que parte, que migra, que deixa escapar pedaços de sua boa gleba, queda dos astros, para que não permaneça onde foi privada de raízes. Não tinham rostos. Não tinham mãos. Não tinham corpos. Somente pés, pés, pés, pés, para procurar caminhos, ladeiras, desmontes por onde fugir. Os mesmos rostos, as mesmas mãos, os mesmos corpos em cima de pés para fugir, pés, pés, somete pés, pedaços de terra com dedos, torrões de barro om dedos, pés, pés, somente pés, pés, pés… Vê-se aonde vão, já não estão em parte alguma, vão, andam sem fazer ruído, sem levantar pó, andam, andam, andam” (Cfr. ASTURIAS, Miguel Ángel, O papa verde, Editora Brasiliense, São Paulo, 1973, pág. 71).

A segunda obra é a de um escritor português contemporâneo, em cujos personagens figuram os imigrantes provindos da Ucrânia e que, na cidade de Bragança, ao norte de Portugal, acabam submetidos aos serviços mais sujos, pesados e mal remunerados. A um dado momento, o autor transporta-se ao país de origem para traçar outra fotografia da fuga: “Em Korosten, a população habituara-se a ver partir as suas gentes e não era novidade uma mãe caída diante das linhas do comboio, a ver os trilhos como um fio de ligação ainda com os filhos. A Katerina levantou-se apoiada pela mão de alguém que lhe disse algo a que não prestou atenção e sentou-se um pouco à espera de sair debaixo das lágrimas. Emergiu um tempo depois” (Cfr. MÃE, Hugo Valter, O apocalipse dos trabalhadores, Editorial Emilio Praia, apoiada pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, Portugal, pág. 39).

Enquanto o primeiro nos remete ao final do século XIX e início do século XX, o segundo traz os contornos da realidade atual. Um demonstra como os países do subcontinente americano, ao longo da história, especializaram-se em fornecer matérias primas para o império estadunidense. O outro escancara o uso e abuso da mão-de-obra barata, por parte da Europa, seja dos migrantes dos países do leste europeu, seja daqueles originários da África, Ásia, da América Latina e do Oriente Médio. Há mais de cem anos, os Estados Unidos exploram até a exaustão a natureza, o solo e a força de trabalho humana para exercer seu domínio sobre o globo terrestre. O mesmo ocorre com o velho continente europeu, o qual, asso a passo, ergue o edifício de sua riqueza, de seu nível de vida e de seu desenvolvimento sobre os ombros encurvados, os joelhos vergados e as mãos calejadas dos trabalhadores e trabalhadoras do sul do planeta.

Tanto Miguel Ángel quanto Hugo Valter descrevem o drama da saída e da separação. Separação em relação ao solo sagrado, onde permanecem enterrados os antepassados; em relação à família, que se vê fragmentada e dispersa; e em relação a uma cidadania justa e digna, a qual deverá ser buscada em terras longínquas. E mostram, ainda, como os excluídos e descartáveis, na verdade, são antes “perversamente incluídos” (J. S. Martins).

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 10 de julho de 2021.

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